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A vida de Maria*, 73 anos de idade, virou de cabeça para baixo quando ela se aposentou. A servidora pública viu seu ganho mensal, em torno de R$ 30 mil somadas as gratificações, ser reduzido para R$ 3 mil como beneficiária da Previdência Social. “Fiquei perdida e por oito meses vivi de favor, sem dinheiro nem para pagar o aluguel”, conta constrangida. “Meu coração só sossegou ao ser atendida pela Defensoria Pública do Pará e conseguir a suspensão dos descontos do meu benefício”, diz a aposentada. Ela foi assistida pela iniciativa que venceu na categoria Mediação e Conciliação Extrajudicial da 13.ª edição do prêmio Conciliar é Legal, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Com quase 500 atendimentos realizados no ano passado, a Câmara de Conciliação em Superendividamento da Defensoria Pública do Pará, além da distinção nacional, vem ganhando o reconhecimento da população paraense. Até o começo do mês de junho, já representava 80% do total de atendimentos prestados em 2022. Maria é uma das assistidas que faz questão de divulgar o serviço. “Falo para todo mundo, muita gente nem imagina que é possível renegociar amigavelmente as dívidas”, avalia.
Sem dúvida, a divulgação do serviço tem contribuído para a maior procura, admite a coordenadora do programa, a contadora Fernanda Campos de Carvalho. “Acredito que o assunto superendividamento tem sido mais debatido e se tornado mais conhecido. Outro fator é o agravamento do endividamento das famílias, que só aumenta”, pondera a servidora.
Tanto no ano passado quanto até o momento, os assistidos chegaram a reduzir o endividamento mensal em quase 90%. Apesar de ainda aguardar a sentença final, com a apresentação de proposta dos credores, a aposentada de 73 anos assegura que seu orçamento está mais folgado. “Cheguei a não receber nada por causa dos descontos de empréstimos consignados, agora aprendi a cuidar da saúde financeira”, complementa.
O Código de Defesa do Consumidor conceitua o superendividado no artigo 54-A, parágrafo 1.º como a pessoa física de boa-fé que comprovadamente fica impossibilitada de pagar suas dívidas de relação de consumo sem prejuízo do mínimo essencial para viver com dignidade, lembra o defensor que atende na Câmara, Cássio Bitar Vasconcelos. Ele explica que o trabalho desenvolvido pela Câmara corresponde à nova etapa do Programa de Apoio ao Consumidor Superendividado, que existe desde 2018.
Com a sanção da Lei n. 14.181 de 2021, que criou a Política Nacional de Prevenção e Enfrentamento ao Superendividamento, a partir de 2022, foi instalada dentro da Defensoria a Câmara de Conciliação em Superendividamento. “Ampliamos o trabalho já executado”, esclarece.
“Se antes oferecíamos atendimento jurídico e orientação financeira, agora conciliamos as demandas desses consumidores na forma prevista na legislação. Os atendidos também passam pelo programa de educação financeira, desenvolvido em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA)”, explica.
Instituições financeiras
Para constituição da câmara, os responsáveis pelo trabalho na Defensoria fizeram diversas reuniões com os bancos mais demandados pelos endividados. “Esse alinhamento com as instituições financeiras é fundamental para tentarmos resolver extrajudicialmente as necessidades desses consumidores”, expõe Cássio.
Ele destaca, porém, que não é tarefa fácil. “É um trabalho de corpo a corpo na tentativa de convencer os representantes dessas instituições de que o superendividamento é um fenômeno jurídico, social e econômico que todos precisam se envolver no processo para solução das pendências”.
“Nosso maior desafio é a participação das instituições. Muitas comparecem à câmara, mas nem sempre trazem uma proposta”, diz o coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria, o defensor Mauro Pinho da Silva. Ele relata que o plano de pagamento é preparado, de acordo com as condições do endividado, mas nem sempre os bancos desejam conciliar.
Quando a situação não é resolvida na Câmara, tanto o termo de audiência extrajudicial, quanto o relatório daquele consumidor superendividado e o plano de pagamento são anexados à ação judicial de repactuação de dívida, que é submetida ao Poder Judiciário. O êxito nas conciliações extrajudiciais atinge percentual de 30%, avalia Mauro.
Estratégia
“Existe grande resistência das instituições financeiras em negociar se a pessoa tiver os valores sendo descontados mensalmente”, ressalta. Por isso, uma das estratégias usadas pelos atendentes da Câmara é forçar que o assistido atrase os pagamentos para que a instituição financeira aceite fechar um acordo.
É o caso do também aposentado Francisco*, 64 anos. Ele assistiu a vida financeira dele e dos familiares se deteriorar durante a pandemia de covid-19. “O emocional ficou muito afetado, não conseguia discernir as coisas direito e deixei me levar pela oferta de dinheiro fácil; o difícil depois é pagar”, fala entristecido. Após comprometer 45% do benefício que recebia mensalmente com empréstimos consignados, não conseguia mais assegurar a sobrevivência dele, da mulher e do neto que cria.
“Tive um acolhimento excepcional na Defensoria, depois de três meses de reuniões e busca de solução, conseguiram que as parcelas dos empréstimos deixassem de ser descontadas. Fechamos um acordo, paguei a primeira parcela e limpei meu nome”, fala o aposentado, com orgulho.
Além de atuar para resolver extrajudicialmente os casos de superendividamento, a Câmara de Conciliação filtra algumas das demandas ao Poder Judiciário. “É freada a judicialização”, avalia Cássio. Ele considera que, apesar de complexo, o trabalho feito na Câmara traz excelentes resultados. “Não só com a repactuação das dívidas, mas reinventando aquele cidadão dentro do mercado de consumo, na medida em que ele consegue avaliar com mais discernimento os produtos que são apresentados e seleciona com critério”, resume.
A Defensoria Pública atende quem possui renda familiar de até três salários-mínimos. Porém, no caso da Câmara de Conciliação em Superendividamento, são avaliados casos de pessoas com boa renda, mas com comprometimento financeiro tão excessivo que ficam sem condições de manter o mínimo essencial para viver. “É uma flexibilização de normativa interna da defensoria”, explica Cassio.
Aprimoramento
O Prêmio Conciliar é Legal, que chegou à décima terceira edição em 2023, identifica, premia, dissemina e estimula a realização de ações de modernização no âmbito do Poder Judiciário. Essas ações devem contribuir para a aproximação das partes, promover a efetiva pacificação e, consequentemente, o aprimoramento da Justiça.
Nele, são reconhecidas as práticas de sucesso e a produtividade dos tribunais, estimulando a criatividade e disseminando a cultura dos métodos consensuais de resolução dos conflitos. Na edição deste ano, foram premiadas boas práticas e a produtividade em mediação judicial e conciliação.
Maria e Francisco são nomes fictícios, utilizados na matéria para preservar a identidade e a privacidade dos entrevistados beneficiados pela iniciativa paraense.
Texto: Margareth Lourenço
Edição: Jonathas Seixas
Agência CNJ de Notícias