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Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 8 de dezembro de 2022
Rosa Weber*
Na semana em que celebramos a Justiça e o Dia Internacional dos Direitos Humanos, dias 8 e 10 de dezembro, respectivamente, é de grande significado o avanço do Poder Judiciário brasileiro em tema de necessária e urgente reparação, o reconhecimento de pessoas no procedimento criminal. Em votação histórica, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou regras para qualificar a atuação de magistradas e de magistrados nesse campo, com repercussões esperadas em todo o sistema de justiça.
Há mais tempo que deveríamos aceitar, somos confrontados com notícias sobre pessoas presas injustamente por meses, ou mesmo anos, em razão de reconhecimento fruto de equívoco realizado por vítima ou por testemunhas, sendo a população negra a principal atingida. Revelam-se, então, múltiplas falhas do Estado, ineficiente ao repetir procedimentos e fluxos que se voltam contra seus próprios cidadãos em vulnerabilidade, aquele que reconhece e o que é reconhecido injustamente. Estado que viola o direito humano fundamental à liberdade e que reforça a inaceitável distinção por raça, além de alimentar a impunidade ao deixar de responsabilizar o verdadeiro autor.
Enquanto a legislação sobre o tema segue a mesma há 81 anos, data da promulgação de nosso Código de Processo Penal, estudos sobre psicologia do testemunho nas últimas quatro décadas trazem evidências robustas de que a memória humana é falha e suscetível a inúmeras variáveis que demandam atenção e controle pelo Poder Judiciário.
É nesse sentido que o CNJ estabeleceu balizas para uma nova era no campo do reconhecimento de pessoas, pois a incorporação dos consensos científicos ao processo é condição para o exercício correto e eficiente da jurisdição, sobretudo a penal, que trata dos bens jurídicos mais importantes da sociedade.
Entre as diversas medidas esperadas do Judiciário estão a indicação de que o reconhecimento seja prova irrepetível – ou seja, ocorra apenas uma vez e próximo aos fatos –, a priorização de outros tipos de provas sempre que necessário e ações para neutralizar conclusões enviesadas ou sugestivas, a exemplo de reconhecimentos realizados com pessoas algemadas ou que não tenham as características descritas em depoimento, assim como o uso de álbuns de suspeitos e de fotos em redes sociais.
Cabe destacar que não estamos sozinhos nesta discussão, pois há décadas países estão criando protocolos de atuação para os atores do sistema de justiça penal a fim de minimizar equívocos. Nos Estados Unidos, que avançam neste campo, pesquisa realizada pela organização não governamental Innocence Project indica que os reconhecimentos pessoais equivocados são a causa dos erros judiciais em 69% dos casos em que houve a revisão das condenações após a realização do exame de DNA.
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou há poucos anos processo emblemático, em que a pessoa acusada pela prática de crimes graves havia sido identificada por testemunhas, ao tempo em que a prova pericial excluía a sua participação no delito (RHC 128.096). Nesse julgamento, de que tive a oportunidade de participar, causou-me forte impacto a percepção de como a fragilidade do reconhecimento, no caso atestada por exame de DNA em sentido contrário, pode dar ensejo a injustiças por vezes irremediáveis. Somam-se a este dezenas de julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) apontando a necessidade de transformar a prática e o entendimento sobre essa espécie de prova.
A necessária regulamentação do tema no Judiciário é apenas um passo inaugural neste caminho, sendo uma das ações recomendadas por grupo de trabalho temático criado no CNJ há um ano. Coordenado pelo ministro do STJ Rogério Schietti, responsável por julgados recentes naquela Corte em defesa da qualificação da prova do reconhecimento, com o suporte do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), o grupo, formado por integrantes da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública, delegados de polícia, representantes da academia e da sociedade civil, também propôs a atualização do Código de Processo Penal e um protocolo para o reconhecimento em sede policial, entre outras medidas.
Assim que assumi a presidência do CNJ, destaquei como um dos eixos de atuação o combate às violações de direitos humanos e a proteção às minorias, reconhecendo que num país de tantas desigualdades garantia de direitos não é retórica, e sim uma necessidade inadiável. O segundo eixo prioritário anunciado foi a melhoria da prestação dos serviços à população, o que chamei do retorno ao CNJ raiz, em busca do contínuo aperfeiçoamento da instituição e do servir com excelência a sociedade brasileira. A qualificação do processo de reconhecimento de pessoas nos procedimentos penais é a síntese desses objetivos, que caminha para se tornar uma realidade imediata em todo o País.
* Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça