Audiências concentradas no sistema socioeducativo chegam a 16 estados

Portal O Judiciário Redação

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As audiências concentradas para reavaliação de medidas socioeducativas de semiliberdade e internação já estão em curso em dezesseis estados e outros oito estão em processo de implantação. Fomentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a partir da Recomendação CNJ nº 98/2021, a metodologia promove a participação de adolescentes, familiares, equipe técnica e outros atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente nessas audiências, efetivando princípios e normas nacionais e internacionais que estabelecem ações centradas nos direitos e interesses de adolescentes e jovens em atendimento.

A ação integra o portfólio do programa Fazendo Justiça, executado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para acelerar transformações no campo da privação de liberdade. A partir de um levantamento de boas práticas, a equipe técnica do programa identificou que as audiências concentradas – inicialmente idealizadas como um mecanismo do sistema protetivo para adolescentes e jovens em situações de risco – estavam sendo realizadas com êxito por magistrados como dispositivo para a reavaliação das medidas socioeducativas. Desde então, um plano para institucionalização e fortalecimento da política foi desenvolvido para auxiliar magistradas e magistrados na implementação, e é atualmente uma das diretrizes estratégicas da Corregedoria Nacional de Justiça.

“As audiências concentradas, especialmente em razão da participação de todos os envolvidos, são importantes para que as situações de vulnerabilidade possam ser identificadas e adolescentes e suas famílias sejam encaminhadas para as redes de proteção”, explica o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ (DMF/CNJ), Luís Lanfredi.

“É fundamental que o Poder Judiciário adote medidas de aproximação das unidades socioeducativas, sobretudo diante do cenário de desafios nas instituições de privação e restrição de liberdade, e a implementação das audiências concentradas é uma ótima ferramenta nesse sentido”, aponta o juiz auxiliar da Presidência do CNJ Edinaldo César Santos Júnior.

Fortalecendo a rede de proteção

A reavaliação das medidas socioeducativas está estabelecida na lei que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). A lei determina que a reavaliação seja realizada no máximo a cada seis meses, a partir de análise do relatório produzido pela equipe técnica sobre o desenvolvimento do adolescente no cumprimento do Plano Individual de Atendimento (PIA). A implementação de audiências concentradas, preferencialmente a cada três meses, traz para esse momento de reavaliação a participação dos adolescentes, das famílias, da equipe técnica e da rede local de defesa, proteção e promoção de direitos de adolescentes e jovens. “Avaliar um relatório, produzido por uma equipe sobre alguém que eu não conheço é diferente de sentar numa audiência e poder dialogar sobre a medida”, argumenta a juíza da Vara de Adolescentes de Londrina (PR), Claudia Catafesta.

Em um momento anterior à audiência, é realizado um levantamento das instituições que compõem a rede local de atendimento, que são chamadas a conversar. Durante essa reunião preparatória é possível alinhar objetivos, identificar responsabilidades, traçar planos e assumir coletivamente compromissos formais em favor do adolescente. Dessa maneira, são rompidos modelos que fragmentam o atendimento de pessoas em cumprimento de medida e dificultam o acesso a informações e direitos básicos. “Nós falamos em sistema de justiça, sistema socioeducativo, família, sistema de meio aberto. Essas são geralmente peças soltas. O fato de estar todo mundo junto numa audiência conversando faz com que se percebam outras coisas. Há uma costura dessa rede, a teia vai ficando cada vez mais próxima”, pontua Catafesta.

Em seguida, a audiência é realizada com a participação de todos os envolvidos. “É uma audiência judicial diferente”, explica Laura Costeira, juíza titular de execução de medidas socioeducativas em Macapá (AP). Há mais de dez anos na carreira, Costeira conta que a primeira vez que foram organizar as audiências, em 2021, eram 18 adolescentes na pauta do dia. “Achei que ia ser rapidinho, como de costume. Começamos às 8h da manhã e só saímos às 21h. Você precisa conversar com o adolescente, a família, as equipes técnicas, isso demanda muito tempo. Agora, a cada três meses, temos uma semana inteira dedicada às audiências. A gente garante um tratamento diferenciado para cada adolescente”, finaliza a magistrada.

Para a pedagoga Gloria Cardozo, que atua na execução de medidas socioeducativas de internação no CENSE Londrina II, o principal ganho das audiências concentradas é o protagonismo e a possibilidade de fala dos adolescentes. “Anteriormente, tínhamos apenas uma análise documental, de uma avaliação feita por pessoas adultas e só. A possibilidade dos afetados, adolescente e família, se colocarem, sem prescindir da avaliação técnica, é fundamental”, complementa Cardozo.

Acolhimento

A realização das audiências nas dependências das unidades socioeducativas é uma das indicações da recomendação do CNJ que os atores apontam como fundamental para o êxito da metodologia. “Nós vamos até a unidade, em um primeiro momento, para preparar a audiência e sensibilizar toda a comunidade socioeducativa: direção, equipe técnica, socioeducadores e adolescentes”, conta o juiz da Vara Infracional de Belo Horizonte, Afrânio Nardy. “O ambiente da instituição, que muitas vezes é marcado por um tensionamento entre segurança e ações pedagógicas, se torna um espaço mais acolhedor”, explica.

O magistrado indica que essa sensibilização, conscientização e preparação das unidades para as audiências altera a dinâmica dos espaços. “A unidade começa a entender que o papel dela é excepcional, que precisa ser breve. E que, na verdade, as construções mais potentes do ponto de vista pedagógico estão no sentido de fazer esse adolescente voltar para a convivência familiar e, a partir do desenvolvimento de combinados e estratégias concretas com todos os envolvidos, retomar a sua história”, complementa.

Além disso, a ida até as unidades aproxima o sistema de justiça da realidade da execução da medida socioeducativa, além de facilitar o acesso de familiares, que já visitam o espaço semanalmente, e a criação de um espaço horizontal de escuta. Nardy conta que depois da primeira audiência concentrada que realizou em Belo Horizonte, um adolescente que teve a medida mantida deixou a sala com a família. “A audiência fluiu de uma forma tão leve, que ele levou essa leveza para o ambiente da unidade. E aí, de repente, as coisas foram se transformando, a dimensão do acolhimento de alguma forma se expandiu”, finaliza o juiz.

 Audiência concentrada em Belo Horizonte (MG). Isabella Lanave/Fazendo Justiça PNUD

Participação e cumprimento da lei

“A socioeducação é incompatível com a superlotação”, diz o juiz titular da Vara de Execução de Medidas Socioeducativas da Comarca de Manaus, Luis Chaves, ao explicar como se deu o início da prática das audiências concentradas. O quadro era de 150% de ocupação nas unidades do estado quando o juiz chegou à Vara, em 2018. O uso das audiências concentradas, realizadas nas unidades foi, em um primeiro momento, para resolver esse cenário, explica o magistrado. “Foi aí que recebemos a equipe do CNJ, que identificou nossa prática e veio conhecer. A partir daí, eles desenvolveram a metodologia”, comemora.

Para Chaves, a realização das audiências nada mais é que um instrumento para cumprir o que determinam o Estatuto da Criança e do Adolescente e a lei do Sinase. “Qualifica o cumprimento da medida. Nós conversamos, explicamos o que está acontecendo. Muda a relação do adolescente com a medida. Eles saem e não estão voltando”, diz. A taxa de reentrada na unidade Dagmar Feitosa, a maior do estado do Amazonas, que passou a ser acompanhada nos últimos anos, caiu de 6% para 4%. Isso porque, ao conversar com os adolescentes, percebeu-se que parte da reentrada se dava por falta de acesso à alimentação. “Não tinham comida em casa. Então, eu passei a indicar em minhas decisões que o Estado forneça duas cestas básicas por mês para as famílias de adolescentes que deixam o sistema”.

São inúmeras histórias que mostram como a abertura de um espaço humanizado de escuta para os adolescentes e familiares no processo alterou completamente a maneira como a socioeducação é realizada. Há seis anos atuando na área, a atual titular da Defensoria de Medidas Socioeducativas do Amazonas, Juliana Lopes, diz que “as audiências concentradas mudaram do vinagre pra água a história do socioeducativo no Estado”.

Lopes conta que a partir das audiências a compreensão de adolescentes e familiares sobre o que é o processo mudou completamente. “Os adolescentes nem sabiam quem era o juiz, quem era o promotor, quais as funções. E, por vezes, especialmente quando a decisão era pela progressão, o judiciário tomava a decisão sem sequer ver os adolescentes. A partir das audiências, eles passaram não só a entender, como a participar efetiva e ativamente”, explica a defensora. Foi possível identificar e abrir espaço para as demandas dos adolescentes. Por exemplo, nas unidades femininas, os cursos profissionalizantes geralmente estavam relacionados a estética e beleza. Em audiências, as meninas pediram: “Queremos fazer curso de mecânica”.

Implementação

A metodologia das audiências concentradas facilita e qualifica o funcionamento do Sinase como um sistema integrado, além de articular os atores do sistema de garantia de direitos”, resume a coordenadora do eixo Socioeducativo do Programa Fazendo Justiça, Fernanda Givisiez. “Em linhas gerais, as audiências trazem a rede toda para o debate e mostram que esses adolescentes também são público dos serviços e precisam ter seus direitos garantidos com prioridade absoluta, como determina a nossa Constituição Federal”, indica a coordenadora.

A partir de reuniões técnicas com a equipe do programa Fazendo Justiça, são partilhados documentos para auxiliar magistradas e magistrados na implementação da metodologia, como o Manual sobre Audiências Concentradas para Reavaliação das Medidas Socioeducativas de Semiliberdade e Internação. Também são realizados intercâmbios entre equipes técnicas que atuam com as audiências para troca de experiências e dúvidas.

Texto: Renata Assumpção
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias

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