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Instituída pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2019, a Ação Nacional de Identificação e Documentação Civil já tem fluxos de operação em 23 unidades da federação e entra agora em sua última fase. Até julho, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Goiás receberão missões técnicas para dar início as atividades, completando todo o território nacional. O estabelecimento de uma rotina permanente de emissão de documentação civil gratuita a pessoas privadas de liberdade e egressas do sistema prisional é parte das ações fomentadas pelo Fazendo Justiça, executado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Ministério da Justiça e Segurança Pública. Conta com a cooperação de mais de 150 instituições e importante apoio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen).
De acordo com o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, Luís Lanfredi, as situações de vulnerabilidade social em que se encontram pessoas que tiveram contato com o cárcere acabam por afastá-las de alguns de seus direitos mais fundamentais. “Articulada de forma estratégica com diversos atores, essa iniciativa é o que possibilita uma pessoa egressa dar seus primeiros passos na retomada da vida em liberdade”, pontua.
Implementada em etapas, a partir do que estabelece a Resolução n. 306/2019 , as atividades envolvem várias frentes, desde a criação de funcionalidade no Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU) para geração automática de listas indicando pessoas sem documentação até a distribuição de 5,4 mil kits biométricos para varas que realizam audiências de custódia, assim como unidades de privação de liberdade em regime fechado nas 27 unidades federativas. Outra parte importante é a capacitação das equipes e disseminação de boas práticas; além da integração de bancos de dados biométricos dos estados à Base de Dados da Identificação Civil Nacional (BDCIN), mantida pelo TSE.
Sistemas integrados
“É uma ação pioneira, porque a partir do uso de uma base de dados do próprio judiciário é possível realizar uma identificação mais qualificada da pessoa no processo judicial”, pontua a juíza auxiliar da presidência do CNJ Ana Aguiar. O coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça da Bahia, Antônio Faiçal explica que problemas de identificação acontecem com muita frequência nas áreas criminais. “As pessoas são presas ‘no susto’ e na maioria das vezes não têm um RG no bolso. Nas audiências de custódia, começa a qualificação dessa pessoa em nossos sistemas”.
O juiz conta que um levantamento recente feito no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0) – sistema eletrônico que auxilia na gestão de ordens de prisão e soltura em todo o território nacional – apontou que existem mais de 3 mil mandados emitidos em nomes como “fulano de tal”, “desconhecido” ou “a apurar”. “A correta identificação garante que todos os atos processuais sejam feitos no nome da pessoa certa. Isso traz credibilidade a esses sistemas que impactam diretamente a vida do cidadão”, conclui Faiçal.
Coordenador do eixo de sistemas e identificação do Fazendo Justiça, Alexander Cambraia, aponta que a ação dá mais eficiência e segurança aos dados sobre as pessoas privadas de liberdade: “A unificação de bancos de dados estaduais à uma base nacional fortalece a segurança de todo o processo”. Assessor de Gestão de Identificação do TSE, Iuri Camargo Kisovec explica que os dados coletados são armazenados na BDCIN, que dispõe, aproximadamente, de 120 milhões de registros de cidadãos brasileiros, para posterior emissão de documentos. “É a maior base de cidadãos da América Latina para essa finalidade”, indica Kisovec.
Em Campo Grande, a identificação civil realizada nas audiências de custódia está em operação desde novembro de 2021 e já soma mais de dois mil cadastros. “Cerca de 95% desses cadastros são novos, de pessoas que não estavam listadas na BDCIN”, aponta o coordenador das audiências de custódia de Campo Grande, Antônio Bezerra. Para o servidor, o ganho de confiabilidade foi imenso, “não há mais divergência de dados”.
Documento já
“Tenho ótimas notas, pretendo me formar, fazer concurso público, ajudar minha família e aqueles que estão passando pela mesma situação que eu”, conta Cristiano*, direto da biblioteca da unidade prisional de Imperatriz, no Maranhão. Aos 23 anos, Cristiano é um dos aprovados no Exame Nacional de Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL) de 2022 e, atualmente, cursa a faculdade de educação física. A participação no exame só foi possível porque ele teve sua documentação emitida pela unidade prisional.
No Maranhão, onde Cristiano mora, em até sete dias após o ingresso no sistema prisional é preciso passar por atendimentos de saúde – para detecção principalmente de doenças infectocontagiosas – e de assistência social para acesso à documentação civil básica. A secretária-adjunta de atendimento e humanização penitenciária do estado, Kelly Carvalho, afirma que a principal dificuldade era conseguir as certidões de nascimento. “No passado, já ficamos dois anos procurando o cartório em que a pessoa foi registrada”, indica. “Essas pessoas estão privadas da liberdade, mas os outros direitos devem ser garantidos”, finaliza Carvalho.
Dados do Executivo federal coletados em 14 estados, em 2017, indicavam que oito entre dez pessoas privadas de liberdade não tinham documento em seus prontuários. Em oficinas realizadas pelo programa Fazendo Justiça, a ausência de documentos é constantemente citada como um dos principais obstáculos para a retomada da vida em sociedade. Atuando em auxílio junto à Vara de Registros Públicos da Capital desde 2011, a juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Raquel Chrispino, argumenta que o registro civil é um direito humano por si mesmo. “Não é só um passaporte para o direito à saúde, o direito ao voto, o direito à educação. Ele consolida vários direitos humanos”. A magistrada aponta que, ao confirmar a identidade das pessoas logo após a prisão e disponibilizar acesso à documentação civil, o Estado, além de garantir direitos, qualifica a saída do sistema prisional. “A falta dos documentos impede o acesso a políticas de trabalho e renda, saúde e também, em muitos casos, à atividade laboral, o que impacta diretamente o futuro dessas pessoas”, ressalta.
A supervisora de assistência psicossocial da Seap Maranhão, Lucinalva Rodrigues, conta que o acesso à documentação levantou um aspecto inusitado para a equipe. Uma das pessoas privadas de liberdade teve acesso à certidão de nascimento e ao RG pela primeira vez, depois de conversas com a equipe de assistência social, entendeu a importância da documentação completa, realizando o reconhecimento de paternidade de seu filho, que teve também certidão de nascimento e RGs emitidos. Lucinalva Rodrigues diz que 95% da população prisional do Maranhão dispõe de algum tipo de documentação.
De acordo com o subsecretário de Ressocialização do Espírito Santo, Marcelo Gouvêa, a execução penal deve garantir cidadania, incluindo acesso à educação, qualificação técnica e inclusão laboral para que as pessoas saiam melhores do que entraram, e não retornem. “Quando a pessoa é inserida em um trabalho, ela abre a sua primeira conta corrente, e o documento é essencial nesse processo. Desse modo, vai acumulando o pecúlio para quando sair e assim dispões de uma reserva para retomar a vida fora do cárcere”, afirma Gouvêa.
Agência CNJ de Notícias
Texto: Renata Assumpção
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier