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Vinte e dois anos após a promulgação da Lei Antimanicomial (10.216), o Poder Judiciário se vê diante de um desafio: implementar a política definida pela Resolução CNJ nº 487/2023, do Conselho Nacional de Justiça. Embora a maior parte dos estados esteja se adaptando para cumprir a norma, alguns órgãos, como os Tribunais de Justiça de Minas Gerais e de Goiás, já contam com programas que tornaram rotineiros o acolhimento e encaminhamento ambulatorial de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei.
Minas Gerais
Com diversas ações realizadas, a corte mineira é uma das precursoras na oferta de encaminhamento adequado às pessoas em sofrimento mental em conflito com a lei pelo Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ). Criado há 23 anos, o programa é feito por meio da atuação dos magistrados e magistradas das varas criminais, que atuam em conjunto com equipes multidisciplinares. Somente na cidade de Belo Horizonte, são 12 equipes multidisciplinares fazendo esse acompanhamento.
Ainda, importante destacar o trabalho realizado pela Central de Execução de Medidas de Segurança 4.0 (CEMES) com premente prática realizada na porta de entrada, ou seja, nas audiências de custódia, garantindo atenção e atendimento à saúde em detrimento da internação desde o primeiro contato das pessoas em sofrimento mental com a justiça criminal, em consonância com a Resolução CNJ nº 487.
À frente da CEMES, o juiz Luiz Fernando Nigro (TJMG) destaca que a iniciativa veio estabelecer cooperação no processamento das execuções de medidas de segurança e seus incidentes, em tramitação nas unidades judiciárias da Justiça Comum de primeiro grau do Estado de Minas Gerais. “A cooperação advém da necessidade de afirmação de uma política de atenção ao paciente judiciário por meio da prestação jurisdicional célere, qualificada e alinhada à política antimanicomial, tudo em harmonia com os preceitos que guiam o trabalho do consagrado PAI-PJ”, explicou.
A atuação das equipes do PAI-PJ e da CEMES com a centralização do trâmite dos processos de execução das medidas de segurança tem, segundo Nigro, trazido resultados positivos. “Somente a equipe interdisciplinar da CEMES já produziu, em pouco mais de um ano de funcionamento, 1236 relatórios sobre os casos em andamento, o que se soma ao acompanhamento integral conferido ao PAI-PJ, nos casos atendidos por tal programa”, declarou.
Nigro acredita que a dimensão do trabalho da CEMES é possível ser medida por meio da análise jurídica e biopsicossocial (acompanhamento, elaboração de relatórios e perícias). No total, 453 pacientes já tiveram a medida de segurança extinta. “Desde o início de sua atuação, já foram realizados 35.662 atos processuais, observando-se a necessidade de um acompanhamento efetivo dos tratamentos em curso com lastro nas medidas de segurança, atentando-se ao seu caráter multidisciplinar”, completou.
Atualmente o PAI-PJ possui nove núcleos regionais implantados nas comarcas de Minas Gerais e mais quatro em fase de abertura. A ação realiza o acompanhamento de 1.239 casos, sendo que 860 são acompanhados pelas equipes interdisciplinares do Núcleo Regional da capital mineira.
De acordo com a juíza coordenadora do PAI-PJ, Bárbara Nardy, a maioria das pessoas encontra-se em liberdade, realizando tratamento no território de origem e na rede aberta de saúde mental, apresentando baixa reentrada criminal. “Algumas pessoas acompanhadas estão privadas de liberdade em unidades prisionais e recebem assistência em saúde nas Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A grande maioria está inserida na Rede de Atenção Psicossocial dos municípios, nos serviços substitutivos”, afirmou.
A magistrada acredita que para a Política Antimanicomial no Poder Judiciário ser mais efetiva é fundamental o fortalecimento da política de saúde mental, já direcionada ao fechamento definitivo dos manicômios e na criação de serviços abertos, comunitários e territorializados. “É importante que o cuidado em liberdade seja um direito de todas e todos. Para tanto, as autoridades dos três poderes e a sociedade, precisam compreender que essas mudanças devem perpassar por uma prática de saúde e justiça que no lugar do anulamento tenha a escuta”, pontuou.
Goiás
Reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), iniciativa vinculada à Secretaria de Saúde estadual e ao Ministério Público de Goiás, se voltou para a efetivação da reforma psiquiátrica desde 2006. O programa tem como principal atividade o acolhimento de pacientes em cumprimento de medida de segurança.
A coordenadora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Estado de Goiás (GMF-GO), juíza Telma Aparecida Alves, da 1ª Vara de Execução Penal, destaca que o programa realiza o acompanhamento e a fiscalização do tratamento das pessoas em sofrimento mental que se deparam com a justiça criminal.
Telma explica que alguns juízes aplicavam medida de segurança de internação de um a três anos. “A internação tinha caráter de prisão, porque, a partir do momento em que a pessoasaude era encaminhada para um hospital de custódia ou manicômio judicial, ela só saía quando cessava a periculosidade”, disse. Na avaliação da magistrada, com o fim do manicômio, a lei veio ligar a aplicação da medida de segurança, que o juiz vai fiscalizar, e o correto tratamento dele na rede ambulatorial de saúde pública nos CAPS.
A juíza ressalta que o PAILI logrou fechar os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do estado. Para ela, o programa traz um olhar diferente à pessoa com transtorno mental acusado de cometer um crime, ao propor tratamento de saúde ao invés de uma internação em instituição com característica asilar e sem data de fim. “Lidamos com pessoas que merecem do Estado atenção e não prisão, ao contrário da pessoa consciente para quem, a prisão vem como uma resposta penal e a restrição de liberdade é a punição”, ponderou.
Outras iniciativas
Maranhão
O Programa de Atenção Integral a Pessoas com Transtornos Mentais em Conflito com a Lei no Estado do Maranhão (PAIMA) garante a implementação de serviços e de estruturas com foco na garantia de direitos e o acesso à assistência voltada para saúde mental. Ainda, o PAIMA se destaca pelo seu trabalho alinhado com a Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis às Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), equipe conectora que realiza articulação da rede pública de saúde com os casos identificados pelo Tribunal. Finalmente, os adolescentes que apresentam transtornos mentais também são assistidos por uma política específica, sendo direcionados para tratamento na Rede Estadual de Saúde e de Assistência Social para um acompanhamento sistemático.
Piauí
O Programa de Cuidado Integral ao Paciente Psiquiátrico (PCIPP), do Tribunal do Piauí, possibilita o tratamento necessário e durante o tempo que for preciso, sem qualquer vinculação com o crime cometido, mas sim tendo em vista o cuidado do paciente. O objetivo é proporcionar condições para ter uma vida com inclusão social, preferencialmente, junto da família.
Criador do programa no estado, juiz José Vidal de Freitas Filho lembra que o desenvolvimento do projeto se deu em função das condições encontradas no Hospital Penitenciário Valter Alencar, durante inspeção realizada em 2012, na cidade de Teresina, no Piauí.
O hospital de custódia não tinha a menor infraestrutura, tampouco condições materiais ou pessoal para oferecer assistência médica necessária. “Na época, houve uma ação coletiva do Ministério Público que pediu a suspensão das atividades daquela unidade para que ele não recebesse mais pacientes. Vimos pacientes com demandas de saúde mental e transtornos clínicos misturados, não havia rede ou equipe médica ampla, somente um psiquiatra que ia uma vez por semana”, relembrou.
Para ele, a situação era extremamente aflitiva, o que o levou a suspender o recebimento de novos pacientes, e o encaminhamento dos que ali estavam para a rede pública de saúde. Posteriormente, a Corregedoria do Piauí editou o provimento 9/2016, que estabeleceu as regras do Programa de Cuidado Integral ao Paciente Psiquiátrico.
Pará
Já o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário do Estado do Pará (Praçaí), do TJPA, criado em 2013, é destinado a pessoas com transtorno mental na condição de presos provisórios ou condenados do Estado do Pará, com medida de segurança aplicada ou com incidente de insanidade mental instaurado.
Em setembro de 2019, a Força Tarefa de Intervenção Penitenciária constatou uma situação generalizada de violações de direitos de pacientes no Hospital Geral Penitenciário (HGP), unidade penitenciária de internação para pacientes psiquiátricos.
Novas iniciativas seguem surgindo
Na Paraíba, o Programa de Atenção Integral à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei do Estado da Paraíba (PROA-PB) foi implantado em abril de 2023 para efetivar as ações de redirecionamento do modelo de atenção à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei no estado. A meta é promover a articulação de programas e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e de direitos humanos, por meio da pactuação permanente entre gestores.
Ademais ações e Grupos de Trabalho têm sido instituídos em outros estados impulsionados pela publicação da Resolução CNJ nº 487/2023.
Resolução
Os tribunais têm o prazo de seis meses, a partir da publicação da Resolução (15 de fevereiro de 2023), para determinar a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições similares de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil. Além disso, o ato normativo estabelece a proibição de novas internações, com fim definitivo das instituições manicomiais em até 12 meses.
A elaboração da norma levou em conta uma série de normativas domésticas e internacionais vigentes sobre o tema, com destaque para a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e seu Protocolo Facultativo (2002), bem como a necessidade de combater a sua prática nas instituições de tratamento da saúde mental, públicas ou privadas, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2006) e a citada Lei 10.216/2001.
A Política Antimanicomial do Poder Judiciário assegura o tratamento das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial que estejam custodiadas, sejam investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade. A medida também vale para esse público que esteja em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto, e conferir diretrizes para assegurar os direitos dessa população.
Judiciário debate a Política Antimanicomial em Seminário Internacional
Texto: Ana Moura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias