Compartilhe
As experiências internacionais na atenção e no cuidado às pessoas em sofrimento mental em conflito com a lei apontam as medidas convergentes nos países, voltadas à preocupação do cuidado desses pacientes. As atuações na Alemanha, Austrália e Brasil foram apresentadas no Seminário Internacional de Saúde Mental, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), na manhã desta sexta-feira (16/6).
As iniciativas demonstram que as convenções e tratados internacionais norteiam a tomada de decisões nesses países, com abordagens voltadas ao trato da pessoa com deficiência, ao sistema penal e aos avanços nas discussões relacionadas à saúde mental no âmbito jurídico.
Durante o painel em que as práticas internacionais foram abordadas, o juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Edinaldo César Santos Junior apresentou o panorama histórico da reforma psiquiátrica no Brasil. Ele destacou que, assim como o caso Ximenes Lopes influenciou diretamente a construção de normativas sobre o tema da saúde mental; o caso Maria da Penha influenciou a luta contra a violência contra as mulheres; e o caso Simone Diniz a luta contra o racismo. Já em 2009, o Brasil abraça a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que possui status constitucional, se comprometendo a adotar medidas para modificar práticas discriminatórias contra esses casos.
“Poderíamos imaginar que tudo está muito bem a partir desses normativos, mas ainda temos muitos desafios a serem transpostos. Para mim, como homem preto, percebi que os ‘indesejáveis sociais’ têm um corpo que é mantido em lugar de desumanidade, que leva para o genocídio e descartabilidade de pessoas”, disse. O juiz reforçou que o Brasil tem um robusto arcabouço legal, mas é preciso construir subsídios baseados nos direitos humanos, lembrando que o sistema tem que “servir aos verdadeiros destinatários como sujeitos de direito”. “Espero que essa política sirva ao respeito à diversidade e vedação de todas as formas de discriminação e estigmatização aos mais vulneráveis”.
Professor catedrático da Universidade de Humboldt de Berlim, na Alemanha, Luís Greco explicou como a questão da saúde mental é abordada no país, a partir de um sistema de justiça que define, no direito penal, civil e administrativo as possibilidades de internação para as pessoas em sofrimento mental em conflito com a lei. De acordo com ele, na Alemanha a privação de liberdade precisa ter base legal e o juiz deve decidir sobre a internação, com base em perícia médica, com revisões periódicas, que não podem ultrapassar nove meses de internação.
Greco explicou que, no direito alemão, a questão da saúde mental envolve a pessoa em sofrimento mental, a sociedade e os que estão ao redor. “Tem que pensar na locomoção do paciente: ele não é objeto para atender nossa conveniência, mas o Estado também deve a ele alguma ajuda, para que não coloque a si e outras pessoas em perigo”. De acordo com o especialista, o tribunal alemão deixa essa situação clara na relação multipolar: é preciso olhar a proteção de defesa dos direitos fundamentais, dimensão de proteção e principalmente do direito das outras pessoas.
No Direito Civil, explicou o professor, permite-se que a pessoa tenha tutela nos casos em que haja risco de suicídio ou provoque danos consideráveis, ou situações em que precisa ter exame e tratamento e a pessoa não concorde. Mesmo assim, é preciso ter autorização do tribunal. Já no Direito Administrativo, estão previstas hipóteses para a internação, mas isso é responsabilidade dos entes federados, que devem ter leis que permitem a hospitalização para problemas específicos.
Já o Direito Penal prevê medidas de segurança para inimputáveis e imputáveis. No entanto, essas medidas e penas são relativamente baixas, em comparação com o Brasil, há menos de 100 casos nesse âmbito em toda a Alemanha.
Austrália
Na Austrália, por sua vez, apesar da extensão continental do país, a população é de apenas 26 milhões de pessoas. Conforme a integrante honorária da Unidade de Justiça de Saúde (Justice Health Unit) e do Comitê Diretor do The Worldwide Prison Health Research and Engagement Network (WEPHREN), Louise Southalan, o país tem desafios em relação à saúde mental aplicada à execução penal, pois, apesar de defender a integração com a saúde pública, há barreiras para essa abordagem.
De acordo com a especialista o país deve reforçar, como é feito na Inglaterra e nos Estados Unidos, as articulações interinstitucionais para poder alcançar os resultados esperados para a saúde prisional. “O governo divide a responsabilidade da saúde mental com os estados. O processo de centralização para esses casos integra a reforma nacional de saúde mental”, disse. Southalan destacou ainda que quem está preso não tem acesso ao sistema público de saúde, porque está sob cuidado de um ente diferente, que deveria ter a responsabilidade de oferecer esse acesso. “Eles recebem baixa atenção nesse sentido. Parte do desafio é tornar a saúde prisional parte da saúde pública nas diferentes configurações de justiça”. A ideia, dessa forma, é adaptar as ferramentas para atender os custodiados de forma mais holística e não apenas limitar o tratamento aos medicamentos ou à biomedicina. “Tenho tentado trazer isso para a OMS, porque é um tópico que permitiria que o serviço de saúde mental atendesse os direitos humanos e estar em acordo com os tratados internacionais e refletir no sistema prisional”.
Para a coordenadora científica da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (UMF Corte IDH/CNJ) Flávia Piovesan, é preciso somar as interseccionalidades para romper com essas diferenças. A consequência jurídica, dessa forma, seria o dever de proteção reforçada pelo Estado. “As pessoas com deficiência trazem a ótica dos direitos humanos com o novo paradigma. A institucionalização, nesse sentido, é um meio que agrava a deficiência por ser um locus que produz violência, estigmatização, discriminação, coerção e abuso”. Ao seguir as orientações internacionais, os Estados têm o dever de abolir a institucionalização pois é prática discriminalizatória. “Esse debate fomenta uma nova cultura jurídica pelo fim da institucionalização, com uma ótica protetiva às Pessoas com Deficiência”, explicou a coordenadora.
De acordo com ela, a Resolução CNJ n. 487/2023 implementa os parâmetros protetivos da ONU e do sistema interamericano, com enfoque do direito, do diálogo com as redes e os princípios da dignidade humana, da proibição de tortura e maus tratos, e da inclusão social e direito à saúde integral em ambiente terapêutico e de não isolamento, sem excesso de medicamento, mas com equilíbrio e vedando métodos de tortura. “A ênfase do dever dos estados na desinstitucionalização tem como base o direito de proteção da saúde mental”, afirmou.
Sistema socioeducativo
Também na manhã desta sexta-feira (16/6), o seminário debateu os desafios experimentados no sistema socioeducativo., em painel presidido pela desembargadora Ivanise Maria Tratz Martins, membro do Conselho de Supervisão dos Juízos da Infância e da Juventude (Consij) do TJPR.
O psicólogo Rogério Gianinni, que atua em processos de qualificação profissional, educação em saúde e educação popular, presidente do Sindicato dos Psicólogos de São Paulo e Secretário Geral da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), iniciou sua palestra citando como a literatura e o cinema retratam a questão das internações psiquiátricas para apresentar dados do relatório sobre 27 comunidades terapêuticas brasileiras onde foram detectadas graves violações de direitos humanos, como maus-tratos, trabalho forçado e até tortura. “É uma política de encarceramento em massa relacionada ao uso de drogas ilícitas, agravada por marcadores de raça, gênero e sexualidade. As comunidades terapêuticas não são dispositivos para tratamento de adictos, são dispositivos de controle das massas, de aprisionamento e doutrinação”, afirmou Gianinni.
Em seguida, em sua palestra, a professora de Psicologia Iolete Ribeiro da Silva, da Universidade Federal do Amazonas, criticou o isolamento dos adolescentes em relação ao seu núcleo familiar e comunitário nas internações do sistema socioeducativo e ressaltou a importância de se discutir a questão do racismo estrutural na relação com a saúde mental. Já o psicólogo Altieres Edemar Frei, professor do curso de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Escola de Saúde Pública do Paraná e assessor técnico em Pesquisas no Conselho Regional de Psicologia do Paraná, falou sobre a necessidade de se fazer oposição ao sistema atual que privilegia o internamento.
A palestra do defensor público do estado de São Paulo Flávio Américo Frasseto trouxe muitas informações sobre os seus quase trinta anos de atuação com adolescentes em conflito com a lei. Para Frasseto, existe baixa normatização da lei federal e, do ponto de vista prático, o que existe de legislação contribui pouco em relação às medidas a serem aplicadas. “Para evitar as internações temos que convencer os juízes de que a detecção de transtorno mental em um adolescente que se envolveu em ato infracional grave não vá resultar em total impunidade, e que ele será cercado de providências e vigilância que operam para minimizar o risco de reincidência”, disse Frasseto.
A mestre em Direitos Humanos e Liberdades Públicas pela Université Paris X Nanterre e coordenadora do Eixo 2 Socioeducativo do Programa Fazendo Justiça (CNJ/PNUD), Fernanda Machado Givisiez, participou como debatedora no painel frisando o quanto é fundamental discutir o racismo estrutural e o silenciamento, especialmente dos adolescentes. Ela criticou também as comunidades terapêuticas, onde encontrou adolescentes junto com adultos, vítimas de trabalho infantil, sendo muito medicados e vivendo em instituições com características asilares, portanto, ilegais, segundo a Lei 10.216/2001.
Texto: Lenir Camimura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias