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Encerrando a série de Encontros dos GMFs e da Justiça Juvenil, representantes dos estados do Centro-oeste, Norte, Sudeste e Sul estiveram em Brasília para trocar experiências e discutir as melhores práticas e os desafios da realidade do sistema socioeducativo em seus estados. O debate presencial, realizado em pequenos grupos e com a possibilidade de conversas aprofundadas entre juízes e servidores de diferentes regiões do país, foi celebrado pelos participantes e realizadores do encontro.
Na sexta-feira (14/7), estiveram presentes no auditório do CNJ magistradas, magistrados e servidores de Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Já no último dia do evento, 18/7, estiveram representados os tribunais de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do Sul e Tocantins. As temáticas abordadas foram desde a vulnerabilidade social de grupos específicos até a questão da saúde mental e da dependência química de adolescentes e jovens, passando por propostas acerca da melhoria de fluxos para atender a esse público, a qualificação das inspeções e das audiências iniciais e concentradas e o papel da leitura e da educação no futuro desses jovens.
Os ciclos de encontros foram promovidos pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ), com apoio técnico do Fazendo Justiça. O programa é executado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e diversos apoiadores para qualificar e acelerar a implementação das políticas públicas no campo da privação de liberdade.
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Ao todo, o ciclo de encontro dedicou cinco dias – 4, 7, 11, 14 e 18 de julho – para tratar da pauta do socioeducativo. “Esses encontros são um marco para a justiça juvenil brasileira e todos que nela atuam. Temos desafios a superar em todo o campo da privação de liberdade, mas o sistema socioeducativo nos demanda um olhar muito próprio. Estamos falando de adolescentes e jovens que precisam mais do que tudo de encaminhamento, de orientação, de escuta ativa. Nós temos o poder de ressignificar essas trajetórias, de oferecer novos caminhos de vida a partir de uma responsabilização justa e humanizada”, afirmou o coordenador do DMF, Luís Lanfredi.
Para o juiz auxiliar da Presidência do CNJ com atuação no DMF Edinaldo César Santos Júnior, “apesar de ser um princípio constitucional, há uma dificuldade em garantir a prioridade absoluta de crianças e adolescentes, principalmente quando estes são submetidos a uma ação socioeducativa. Como enfatizamos ao longo desses dias de trabalho, é fundamental enxergar os adolescentes como seres humanos integrais, não reduzindo-os a seus atos infracionais”, aponta.
A voz dos adolescentes
Um momento especial nos encontros foram as leituras das cartas escritas por jovens que estão cumprindo medidas socioeducativas. Ao todo, a equipe do CNJ recebeu mais de 500 cartas endereçadas aos magistrados e magistradas que revelam as condições da internação, experiências dentro e fora das unidades, e que foram resumidas e lidas nos eventos pela pesquisadora e escritora Ravena do Carmo e pela integrante da equipe técnica do Eixo Socioeducativo do Fazendo Justiça Iasmim Baima. Cópias das correspondências de cada estado foram entregues aos respectivos representantes.
Durante os dois últimos dias de encontro, uma das cartas lidas era de um jovem com 20 anos, que demorou dois anos para começar a cumprir a medida socioeducativa.
“Infelizmente, me envolvi em situações que eu acredito que talvez tenham sido ocasionadas pela vulnerabilidade social e cultural que vivi desde a minha infância, onde meus direitos foram negados, dia após dia”, escreveu. No texto, dizia ter “saudade de açaí, de nadar no rio, de empinar pipa e de minha casa. Sinto muita falta da minha família e posso dizer aos senhores que não é fácil estar aqui.” O jovem sonha em cursar uma faculdade, mas acredita que será difícil: “Na real, quando o cara vai embora daqui, ele se sente um pouco perdido. As donas até ajudam, orientam, mas a vida, a luta, é dura. Sinto que a gente precisa de um apoio maior quando a gente sai, porque na rua é tudo difícil. A gente leva muito ‘não’ de todo mundo”.
A leitura das cartas comoveu os magistrados e magistradas presentes. “A socioeducação é intrinsecamente uma ação pedagógica, uma ação que exige a construção de relações horizontais. Infelizmente a nossa visão da socioeducação ainda é muito marcada por um olhar punitivista, antes, durante e depois do cumprimento da medida”, pontuou o juiz da Vara Infracional da Comarca de Belo Horizonte Afrânio José Fonseca Nardy.
“A gente precisa se emocionar com essas cartas, se emocionar ao conhecer a história do outro. Porque, depois que passamos por essa história, ela poderá ser outra a depender do que decidirmos fazer ou não pelo socioeducativo”, afirmou o juiz Edinaldo César Santos Júnior.
Dados e inspeções
Uma das preocupações apontadas pelos magistrados foi a ausência de dados qualificados sobre o sistema socioeducativo brasileiro. A partir dessa demanda, o CNJ desenvolveu novas metodologias de coleta e análise dessas informações por meio das inspeções judiciais periódicas registradas no Cadastro Nacional de Inspeção em Unidades e Programas Socioeducativas (Cniups). Com o novo cadastro, elaborado com apoio técnico do Fazendo Justiça, espera-se que a disponibilização de dados, essencial para o desenvolvimento de políticas sérias e efetivas, seja qualificada.
Também está em fase final de desenvolvimento a Plataforma Socioeducativa, solução tecnológica desenvolvida pelo CNJ para centralizar e integrar todas as informações relativas a processos que envolvam medidas socioeducativas. O projeto piloto será lançado na terça-feira (25/7) no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.
Até o final do ano, será ainda lançado um painel de Business Intelligence (BI) no site do CNJ, que fornecerá dados em tempo real sobre o número de adolescentes no meio fechado, capacidade de cada estado, perfil demográfico e informações sobre educação e saúde. Essas informações ajudarão a propor e qualificar políticas públicas, além de identificar pontos críticos e buscar parcerias com outras instituições governamentais. Também estão em desenvolvimento manuais para orientar as inspeções no meio aberto e lidar com suas peculiaridades.
Além da geração de dados, o trabalho de inspeções judiciais é essencial para garantir transparência e prevenir a violência institucional nas instituições de privação de liberdade. A implementação de formulários de inspeção no meio fechado, baseados em parâmetros nacionais e internacionais, tem sido eficaz na avaliação de diversos aspectos das medidas socioeducativas.
Importância da rede
No período da tarde dos encontros sobre o socioeducativo, os magistrados e magistradas presentes eram convidados a dividir suas experiências em conversas individuais ou em pequenos grupos. Em círculos, cada um recebia um papel com a temática a ser abordada com o colega, sempre relacionada a algum desafio do ciclo socioeducativo.
Ao tratar da porta de entrada do sistema socioeducativo, foram listadas sugestões para aperfeiçoamento da articulação interinstitucional dos Núcleos de Atendimento Individualizados (NAIs), que deveriam ser o primeiro local de atendimento aos adolescentes a que foram atribuídos um ato infracional. Muitos magistrados levantaram questões sobre a dificuldade em se manter uma periodicidade das audiências, o deslocamento entre unidades e a participação da rede nessas audiências, sobretudo no interior.
A Juíza de direito da 2ª Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá (MT), Leilamar Aparecida Rodrigues, avalia que um dos pontos que precisam ser melhorados nos NAIs são as articulações em rede. “Mesmo alguns profissionais que atuam na rede de proteção de direitos não conhecem a rede. Precisamos capacitar esses profissionais para que eles entendam como encaminhar e como articular esses serviços”, afirmou.
A importância de o magistrado ter participação ativa na rede foi um dos temas trazidos pela juíza titular da Vara de Adolescentes em Conflito com a Lei de Londrina (PR), Cláudia Catafesta. “Eu me reconheço como articuladora dessa rede participando de comitês, fazendo as audiências. Um juiz ou juíza não pode apenas reagir a problemas que são trazidos, ele precisa estar presente na articulação e ajudar a construir pontes com os demais atores”, disse.
O juiz do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Afrânio José Fonseca Nardy, falou na ocasião sobre a boa experiência que é o Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente (CIA-TJMG), versão mineira no NAI. “O CIA é uma luz que não se apaga. A possibilidade do atendimento integrado abre portas para atender os adolescentes a ponto de eles nos procuram quando precisam, mesmo em situações extraordinárias”.
Execução e porta de saída
Em relação à etapa da execução da medida, uma preocupação levantada pelo juiz titular do Juizado Especial da Infância e Juventude de Palmas, Adriano Gomes de Melo Oliveira, é com a qualificação dos agentes socioeducadores. “O Poder Judiciário precisa trabalhar para que esses importantes servidores sejam melhor qualificados, influenciar o Executivo para isso. Eles têm funções muito importantes e são essenciais para que as medidas sejam efetivas”, afirmou. O magistrado disse que uma prática que tenta implementar nas unidades visitadas por ele é estimular os agentes a se reunirem e discutirem entre si, transformando a troca de ideias numa forma de qualificação.
Muitos dos presentes comentaram sobre as audiências concentradas, que fazem parte da etapa da porta de saída das medidas socioeducativas. Foi enfatizada a participação do adolescente e o esforço necessário para que elas sejam feitas de forma presencial. “Aqui estamos falando sobre formato ideal, do que pode ficar no intermédio do não demorado, mas também não corrido, já que é um recurso adicional ao processo. O magistrado é um grande articulador desse processo”, pontuou o juiz do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), José Roberto Poiani.
Para a juíza Leilamar Aparecida Rodrigues, do Mato Grosso, a reavaliação da medida na audiência concentrada é a “alma” do trabalho do magistrado ou magistrada que lida com adolescentes e jovens. “É o momento em que eu sei de tudo o que se passa com aquele adolescente, já falei antes com a psicóloga, a assistente social. Procuro não focar no delito, e sim na responsabilização”.
Outra medida que se debateu foi a elaboração do Plano Individual de Atendimento de Crianças e Adolescentes (PIA) com perspectiva de desinternação desde o início do processo, considerando que a internação é medida excepcional. Também foi trazida a possibilidade de incluir no PIA maior atenção à diversidade religiosa dos adolescentes em cumprimento de medida, com olhar específico para aqueles de religiões de matriz africana.
Na discussão sobre grupos sociais vulneráveis dentro do sistema – como adolescentes e jovens negros e indígenas, por exemplo -, o juiz auxiliar da Presidência do CNJ Edinaldo César Santos reuniu os magistrados para falar sobre racismo e tortura nas unidades. “O racismo presente no socioeducativo coloca maioria negra em regime de internação. E as marcas de torturas presentes nas denúncias precisam ser lembradas nas audiências de custódia. Como juízes, no momento da audiência, não podemos transigir contra a integridade física de alguém”, disse.
Divisor de águas
As juízas e os juízes presentes pontuaram a importância do encontro presencial promovido pelo CNJ e a riqueza da troca de experiências entre diferentes realidades para o avanço do debate sobre o socioeducativo. “O formato em que esse evento foi realizado, com grupos pequenos, facilita a interlocução com colegas de outros estados, e também uma atenção maior do CNJ para o que acontece nos nossos estados”, celebrou a vice-coordenadora Estadual da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA), Danielle de Cássia Silveira Buhrnheim.
“Nós, como magistrados, não temos uma força institucional a ponto de cuidar desses temas junto com os demais atores do sistema socioeducativo. O CNJ em nível institucional abre as portas, faz essa dinâmica, essa interação com os demais órgãos que mexem com o sistema socioeducativo”, disse o juiz Márcio da Silva Alexandre, da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
“Eu acredito que o Fazendo Justiça é um divisor de águas na qualificação do sistema socioeducativo. Além da qualidade das pesquisas e manuais, tem sido um suporte muito importante para que as ações pensadas nacionalmente ganhem força e concretude nos estados”, finaliza a juíza Claudia Catafesta, do Paraná.
Confira os depoimentos de representantes da Justiça Juvenil que participaram do quarto dia de evento: juiz Afrânio José Fonseca Nardy (membro Coordenadoria Infância e Juventude/TJMG); juíza Célia Regina Lara (coordenadora-adjunta Infância e Juventude /TJGO); juiz Arion Mergár (coordenador Infância e Juventude /TJES); juiz Luís Antônio de Abreu Johnson (Coordenadoria da Infância e Juventude/TJRS).
Confira os depoimentos de representantes da Justiça Juvenil que participaram do quinto dia de evento: juíza Danielle de Cássia Silveira Buhrnheim (vice-coordenadora da Infância e Juventude/TJPA); juiz Adriano Gomes de Melo Oliveira (coordenador da Infância e Juventude/TJTO); juíza Cláudia Catafesta (Infância e Juventude/TJPR); juiz Márcio da Silva Alexandre (Vara da Infância e Juventude/TJDFT); juíza Leilamar Aparecida Rodrigues (Vara da Infância e Juventude/TJMT).
Texto: Natasha Cruz, Ísis Capistrano, Pedro Malavolta e Nataly Costa
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias