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Com um seminário de três dias realizado em Brasília, teve início na última semana a nova turma da especialização “Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional”, uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). O evento reuniu os 40 magistrados de todo o país selecionados para ter um primeiro contato com as discussões que serão aprofundadas durante os próximos 12 meses, a exemplo de procedimentos de inspeções em prisões, alternativas penais, tratados internacionais e outros desafios para o aprimoramento do sistema prisional no país.
Na mesa de abertura, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e coordenador científico da especialização, Rogerio Schietti, afirmou que é preciso pensar não só nas penas aplicadas a quem comete um crime, mas nas condições nas quais essas penas são aplicadas. “Não pretendo aqui dizer que nós, magistrados, somos os responsáveis por todos os problemas do sistema penal, mas essa é uma reflexão que precisamos fazer como juízes criminais e pensar em formas de aperfeiçoar o nosso trabalho”, concluiu.
Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ e coordenador institucional do curso, Luís Lanfredi destacou que a legalidade aplicada para encarcerar alguém deve ser a mesma aplicada para conferir tratamento digno para essas pessoas.
“Esse curso trabalha parâmetros de legalidade que, talvez, nem imaginemos possa nos servir para orientar o dia a dia da atividade como magistrados. Trata de uma forma de afirmação da própria magistratura diante da matriz e de posturas de um juiz penal perante a sociedade. Pensamos esse curso como forma de investir na composição de teoria de libertação desse imaginário que nos faz flertar com a deslegitimação das nossas posições ou fragilizar conceitos ligados à presunção constitucional de inocência, os quais deveríamos ser os primeiros a defender. O juiz penal precisa entender a sua função e o seu lugar no processo e na magistratura. Particularmente, uma magistratura que não seja para garantir direitos acaba ficando sem sentido. Em nosso juramento quando assumimos a toga, prometemos justamente cumprir a constituição, cumprir a lei, mas o devemos fazê-lo na integralidade sistêmica do que isso representa”, afirmou.
O conteúdo da especialização foi desenvolvido com apoio do programa Fazendo Justiça, iniciativa do CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que cria e qualifica políticas públicas voltadas aos sistemas penal e socioeducativo. Os módulos se baseiam na série de produtos de conhecimento lançados pelo programa, sobretudo na área de Proporcionalidade Penal e em temáticas como Alternativas Penais, Justiça Restaurativa, Monitoração Eletrônica e Política Prisional, incluindo a metodologia da Central de Regulação de Vagas, que iniciou a operação piloto em junho deste ano no Maranhão.
O processo seletivo considerou políticas de inclusão, entre elas o critério de raça/cor, equidade de gênero, diversidade étnica e pessoas com deficiência. Também foi escolhida pelo menos uma pessoa por estado e o Distrito Federal, no caso da Justiça Estadual, e uma por região, no caso da Justiça Federal, para garantir que experiências de todo o Brasil estivessem presentes nos debates.
Estado de coisas inconstitucional
Ao falar sobre o tema ‘A condição Humana e o Sistema Prisional: uma reflexão crítica sobre o fenômeno do superencarceramento no Brasil’, a juíza auxiliar da presidência do CNJ com atuação no DMF Karen Luise Souza disse que o início da nova turma é necessário diante do estado de coisas inconstitucional que ainda marca as prisões brasileiras. “A magistratura não tinha, até então, uma formação com esse recorte. A transformações sociais, a maneira como hoje estão as prisões, os motivos e as razões que levam o aprisionamento de pessoas são desafiadores. É importante para que possamos construir alternativas para a execução penal, pensar na segurança pública e nas questões criminológicas”.
A magistrada reforçou a importância da produção normativa e editorial do CNJ nesse campo, e lembrou do aumento de 18,3% no número de pessoas em contato com o sistema penal relatados pelo Executivo desde 2015 – ano em que o sistema carcerário brasileiro foi considerado institucional pelo STF – e 2022, chegando a 826.740 mil pessoas presas. Apresentou, ainda dados sobre indígenas, pessoas LGBTQIAP+ e mulheres mães e gestantes, apontando as resoluções do CNJ n. 287/2019, n. 348/2020 e n. 369/2021, que estabelecem procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário com relação ao tratamento dessas pessoas durante a execução penal.
“É importante fazer a relação entre o encarceramento da mulher e a política de drogas, além das condições as quais essas mulheres são submetidas no cárcere. A demanda LGBTQIAP+ sempre existiu, mas não havia meios ou políticas públicas estabelecidas para que sejam aventadas melhores condições para essas pessoas”, apontou. Segundo a juíza, a garantia de dignidade humana no cárcere depende de controle externo. “Há falta de dados inclusive sobre os óbitos no sistema carcerário. Partimos do exemplo de relatos de extinção de punibilidade apenas com a informação de que a pessoa morreu durante a prisão – não existe apuração do fato, perdemos registros sobre quem são essas pessoas, como vivem, como morrem”, pontuou.
Durante a aula, para falar sobre inspeções, foram exibidas imagens e fotos de dentro das unidades prisionais. Um vídeo curto exibiu uma cela com camas improvisadas e, ao lado delas, ratos. Em outra mídia, outra cela medindo cerca de 4×4 m² mostrava 20 homens atrás das grades. Um dos presos contava que não havia cama para todos e reclamava do calor. Segundo ele, não havia ventilador e energia elétrica. Também foram exibidas fotos em que apareciam dedos de detentos que foram quebrados em um possível episódio de tortura.
As audiências de custódia também foram mencionadas, especialmente sobre o resguardo de direitos durante o procedimento. Desde 2015, o número de audiências de custódia realizadas por ano aumentou em 95 vezes; em 2015 foram feitas 2496 já em 2022, mais de 236 mil.
Em grupos, os pós-graduandos refletiram sobre a palestra, a partir de um texto de Juliana Borges, autora do livro Encarceramento em Massa. As considerações dos alunos englobaram questões sobre o real discurso do encarceramento estar na dominação, controle e um público-alvo definido para o processo disciplinador e o perfil das pessoas encarceradas.
A leitura foi ao encontro do entendimento apresentado pela juíza Karen Luise Souza. “A centralidade do encarceramento encontra-se na questão da raça. Pessoas pretas foram por mais de 300 anos ativos financeiros e depois foram colocadas no mercado de trabalho sem oportunidade, sem acesso à educação, sem acesso ao voto, até 1988, porque o analfabeto não podia votar. O estado escolheu excluir essas pessoas e hoje temos grande maioria marginalizada. As nossas reflexões têm que passar por isso porque a nossa política penal vai atingir prioritariamente a raça negra”, finalizou.
O evento em Brasília ainda incluiu lançamento de publicação com artigos desenvolvidos pelos magistrados da edição anterior, oficina aos participantes sobre a utilização do ambiente Moodle e organização de estudos em no modelo ensino à distância e palestra do magistrado do Tribunal de Justiça de Goiás, Alexandre Bizzoto, com o tema ‘Dificuldades do fortalecimento da crítica criminal libertária em face da exploração econômica do medo e seus vetores punitivistas’.
Para uma das cursistas, juíza da 3ª Vara Regional de Execução Penal de Caruaru (TJPE) Lorena Junqueira Victorasso, o seminário de abertura foi um momento de acolhida e provocação em relação ao exercício da jurisdição penal nos dias atuais e a realidade do sistema prisional brasileiro. “Foi uma oportunidade para refletirmos sobre como o Judiciário atua e, em que medida, contribui para o Estado de Coisas Inconstitucional dos nossos presídios e na perpetuação de uma violência sistemática em relação às populações mais vulneráveis”, avalia.
Segundo a magistrada, o Poder Judiciário é o principal garantidor de direitos fundamentais e esse compromisso deve ir além de uma retórica para ganhar efetividade no dia a dia. “Espero que, ao longo da especialização, tenhamos ainda mais subsídios para o aprofundamento dessa análise crítica, tão necessária e urgente. Precisamos refletir sobre como punimos, como prendemos, impactos individuais e sociais, alternativas ao encarceramento e como coibir tantas violações”, conclui.
Confira a íntegra da mesa de abertura:
Texto: Pedro Malavolta e Ísis Capistrano
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias