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Tratar as crianças em acolhimento como “prioridade da prioridade” exige reforço do trabalho em rede e eficiência no processo de cuidado das crianças e das famílias. A questão foi debatida durante o “2.º Encontro do Sistema de Justiça: a excepcionalidade da medida protetiva de acolhimento e a preferência do serviço de família acolhedora”, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nessa terça-feira (15/8). A transversalidade dos direitos humanos nos serviços em rede, a brevidade do tempo e a participação conjunta e estruturada dos serviços foram apontadas como necessárias para atender às crianças afastadas das famílias de origem por ordem judicial.
Para o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Uberlândia e integrante da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), José Roberto Poiani, o direito à vida e à convivência familiar devem ser respeitados de igual maneira. “O Estado é corresponsável pela manutenção desses direitos. Oferecer a possibilidade de um acolhimento familiar não pode ser norteado pela questão financeira, mas pela garantia de direitos”, afirmou.
O juiz, nesse contexto, tem de trabalhar em rede. “Tem de conhecer o chão de fábrica, conhecer as pessoas e se deixar ser conhecido pela comunidade, até para entender a realidade com que está lidando”. Poiani destacou ainda que a integração operacional da rede está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no marco Legal da Primeira Infância – e o Judiciário é o primeiro ator nessa questão.
O incentivo à implantação do serviço de acolhimento em Família Acolhedora atende ao princípio da convivência familiar, importante para o desenvolvimento infantil. Para o juiz mineiro, a rede precisa se perguntar se tem convicção dessa afirmativa. “Sem essa posição bem definida, não é possível fortalecer esse serviço”, garante.
Poiani defendeu ainda que a vontade da criança e do adolescente sejam considerada ao se definir o encaminhamento. “Se, ao ouvi-los, eles dizem que não querem ser adotados ou participar de uma família – por sua experiência ter sido tão traumática – a decisão deve ser a de respeitar essa realidade e indicar o acolhimento institucional. O direito de participação da criança permite a construção de cuidados intensivos e personalizados”, afirmou.
Nesse sentido, o diálogo da rede é o melhor caminho, assim como a prevenção. Segundo o juiz, a família de origem precisa, sim, de acompanhamento, para que possa superar o momento difícil, encontrar o apoio do Estado e reconstruir-se. Esse é o ideal e reforça a necessidade da brevidade nesses casos. “Nós não temos tempo. O tempo da criança e o tempo da legislação precisam ser observados. Se uma criança tem dois anos e eu levo quatro anos para resolver sua situação, ela já perdeu a primeira infância”, explicou.
Acolhimento Familiar e Institucional
Já a assistente social Jane Valente defendeu o direito de crianças e adolescentes de viver em família (de origem e extensa), ressaltando que, nos casos em que houver necessidade de medida protetiva, é preciso ter a Família Acolhedora como medida preferencial, tal qual determina o ECA, sem perder de vista a qualidade do acolhimento institucional. Jane, que também é pesquisadora da Universidade de Campinas (Unicamp), membra do Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária e da Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora, reforçou que, quando a adoção é necessária, precisa ser centrada no melhor interesse da criança.
De acordo com ela, é preciso olhar o serviço de acolhimento familiar como um acolhimento provisório de crianças e adolescentes afastados daqueles que não podem cumprir suas funções. Nesse contexto, o serviço deve oferecer cuidado e proteção, que é a função social da família. “Quando o estado traz para si a responsabilidade pela criança, o serviço tem de cumprir essa função. O que não podemos admitir e assistir é um serviço, seja ele institucional ou familiar, que continua a criar revitimização das crianças. Isso é inadmissível. Se a família tem vulnerabilidade, precisamos dar a ela acesso aos serviços, porque é muito triste para criança sair de sua família.”
Segundo dados do Censo SUAS 2022, o Brasil possui, de um total de 203 milhões de habitantes, quase 53 milhões crianças e adolescentes até 18 anos, o que representa 26% da população. Dessas, apenas 0,06% estão em medida protetiva. “É possível cuidar muito bem dessas crianças que são a prioridade da prioridade. E por que identificá-las assim? Porque elas estão longe de seus pais, estão na UTI da assistência social. Se não trabalharmos juntos para que o sistema de garantia de direitos funcione, elas vão perder suas famílias”, alertou Jane.
A assistente social destacou ainda que proteção integral só se faz pelas transversalidades das políticas: “são os Direitos Humanos passando por todas as políticas de assistência social, saúde e educação”. Também recomendou que a criança que chegue com uma guia de acolhimento leve também todo o histórico do que essa família já passou – e isso inclui o plano de ação, o plano individualizado de atendimento (PIA), que é elaborado em conjunto com a família e profissionais da rede, e o que motivou a retirada da criança de sua família.
Já a promotora de justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) Paola Botelho, que mediou a mesa “Criança e Adolescente em Medida Protetiva: a Prioridade da Prioridade”, destacou que, quando a criança entra no acolhimento, a rede aparentemente se porta como se o problema tivesse sido resolvido. Mas, pelo contrário, cada serviço responsável por ela deveria acender uma “luz vermelha”, que diz que aquela criança está em risco. “Temos de ter essa percepção para trabalhar de forma mais célere e de forma eficiente.”
Boas Práticas
As representantes das instituições que executam o serviço de Família Acolhedora no município de São Paulo e no Distrito Federal destacaram a importância de considerar a criança um ser integral, fortalecendo, assim, a rede que a acompanha, assim como a família que a acolhe e a família de origem.
Débora Vigevani, coordenadora de Advocacy do Instituto Fazendo História, de São Paulo, contou a história da instituição até começarem a executar o serviço de acolhimento familiar, destacando a importância de estudar, conhecer e se preparar para assumir o serviço.
Essa base trouxe solidez para realizar o acolhimento com segurança, refutando os mitos e inseguranças que outros serviços demonstravam em relação ao serviço. Em São Paulo, 155 serviços estão conveniados ao município, com 2.600 vagas; apenas cinco instituições oferecem Família Acolhedora, com 150 vagas, havendo apenas 24 crianças acolhidas nessa medida. O IFH tem 30 vagas, apenas 15 crianças acolhidas. “Defendemos que seja feito um diagnóstico para entender o baixo número de acolhimentos e para que a gestão pública possa lidar com isso”.
No Distrito Federal, a organização Aconchego assinou termos de parceria que permitiram aumentar o número de vagas para família acolhedora. Até 2024, o número de vagas passará de 20 para 65. A psicóloga da instituição, Julia Salvagni, destacou o preparo das famílias que participam do serviço e da equipe que trabalha na entidade. “Fizemos um investimento em saúde mental e cuidados. A Aconchego tem a mesma equipe técnica desde 2016, tendo apenas ampliado o número de funcionários, mas não temos rotatividade. Isso é um bom sinal de saúde mental e de continuidade do acompanhamento, pois se vinculam com as famílias que acolhem, com as crianças e com as famílias de origem”. O resultado, de acordo com ela, é a que a efetividade e eficiência se dão pela qualidade do serviço.
Texto: Lenir Camimura
Edição: Jônathas Seixas
Agência CNJ de Notícias