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Discussões sobre o atendimento social nas audiências de custódia, práticas restaurativas, saúde e redução de danos e o impacto do tráfico de drogas sobre populações indígenas foram alguns dos assuntos que pautaram a tarde do segundo dia do Fórum Nacional de Alternativas Penais (Fonape) nesta quinta-feira (14/9). Com tema “Alternativas penais e políticas sobre drogas: caminhos para novos paradigmas no Brasil”, o evento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é parte das atividades do programa Fazendo Justiça, parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O evento tem ainda apoio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) e da Secretaria Nacional de Política Penais (Senappen).
No primeiro painel da tarde, com o tema “Atenção Social a Usuários e Dependentes na Audiência de Custódia: Prender Resolve?”, o médico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP Leon Garcia falou sobre a construção da percepção social e das políticas de Estado sobre o uso de drogas, centradas na coerção. “Investimento em deter, julgar e prender pessoas pelo uso de substâncias, ou tendo esse uso como agravante, não é tratamento, pelo contrário, agrava a marginalização social e distancia as pessoas do acesso ao tratamento de saúde.”
Para Garcia, o atendimento social antes das audiências de custódia, a exemplo do que acontece nas APECs, “é a oportunidade de um resgate de uma dívida social com pessoas que têm dificuldades, que não entram em contato com o Estado a não ser pelas forças de segurança e o sistema de justiça. O Estado tem o dever de retomar ou de fazer essa ponte com as outras políticas sociais das quais essas pessoas foram privadas. Essas equipes favorecem o acesso a direitos, à integração social. Aí, sim, vamos ter impacto na reincidência de comportamentos criminosos”.
A psicóloga do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário de Minas Gerais Fernanda Otoni apontou a necessidade de se tratar a presença do usuário e dependente de drogas em audiências de custódia sob outra perspectiva. “Se o sujeito foi parar na audiência de custódia, foi por um desvio de direcionamento incrustado nas políticas institucionais em curso no nosso país.” Para Otoni, é preciso julgar “o crime cometido pelo Estado de não oferecer a esses cidadãos os recursos necessários para que possam estabelecer um modo de vida digno, que lhes traga satisfação. A autoridade judicial está diante de um sujeito para quem faltou moradia, educação, assistência social, saúde e alimentação, proteção à violência e ao sofrimento, expostos ao desamparo desde muito cedo”.
O coordenador da Rede Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional (Renaesp), Sandro Augusto Lohmann, finalizou o painel retomando a pergunta inicial – “Prender resolve?” – e ressaltando a importância de políticas consistentes de acesso e garantia de direitos. “Se prender resolvesse, nós não teríamos casos de reincidência. O que vemos na prisão é a vitrine de tudo aquilo que não funciona na sociedade: não há saúde, educação, qualificação, oportunidades, geração de emprego e renda. O que leva as pessoas à drogadição, muito provavelmente, é um problema social, um desarranjo ou alguma situação que ela colocou em vulnerabilidade.”
Criminalização e racismo
No painel sobre “Tomada de Decisão sobre a Liberdade na Audiência de Custódia: Desafio Frente à Lei de Drogas”, o diretor da Plataforma Justa, advogado Cristiano Maronna, trouxe uma série de reflexões sobre o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, em que se discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, em curso atualmente no STF. Para Maronna, “quem mais precisa de descriminalização são os vulneráveis”. Para ele, limitar a declaração de inconstitucionalidade à maconha vai perpetuar o problema. “Seria fundamental incluir outras drogas, exigindo que o Estado faça sua parte, de modo que a investigação pré-processual comprove o tráfico”.
O diretor de litigância e incidência da Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, fez uma retomada histórica da legislação do país e das escolhas feitas para manutenção das bases racistas em que a sociedade está estruturada, apontando que a lógica da legislação criminal mantém as mesmas bases. Para o advogado, não é possível falar sobre a criminalização de drogas sem tocar na temática do racismo. “Nós precisamos entender que a construção do estado democrático de direito precisa de uma análise profunda da violência institucional no nosso país. Se nós queremos derrotar o racismo estrutural, precisamos derrotar cada elemento da violência institucional.”
Relatando sua experiência em audiências de custódia, a juíza Jocelaine Teixeira, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, lembrou que a legislação determina que a liberdade deve ser a regra no processo penal: “As audiências de custódia são a porta de entrada – ou não – para o sistema carcerário. Isso vai depender muito da nossa formação e percepção da qualidade da prova, que está no auto de flagrante, e do exame criterioso que fazemos dos requisitos para a tipicidade que vem na imputação do auto de prisão em flagrante, e dos requisitos inclusive da legalidade dessa prova. A legislação nos obriga a fazer isso, em especial nesse recorte que é a proposta desse fórum, que é a Lei de Drogas”.
Práticas Restaurativas e Lei de Drogas
Uma das salas temáticas tratou sobre a possibilidade de utilização da Justiça Restaurativa para casos de ligados à Lei de Drogas. A professora da Universidade Católica de Pernambuco e especialista em Justiça Restaurativa, Fernanda Rosenblatt, levantou a questão de que o modelo mais comum de aplicação de processos restaurativos precisa ter uma vítima. “Mas como fazer quando se tem um crime sem uma vítima definida, como são os ligados à Lei de Drogas?”. Para a pesquisadora, a resposta a essa questão passa por resgatar dois princípios da Justiça Restaurativa: a defesa de uma Justiça que encarcere menos e que opere em termos diferentes dos tradicionais.
O desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Marcelo Semer avalia que juízes têm resistência em aplicar algumas medidas que podem beneficiar as pessoas que julgam. “A possibilidade de o juiz poder encaminhar alguém ligado ao tráfico de drogas para uma medida de Justiça Restaurativa pode contribuir que se usem mais medidas cautelares”, afirmou.
A coordenadora do Instituto Recomeçar do Distrito Federal, Thaise Miguel Cardoso, é egressa do sistema prisional por uma condenação com ligação ao tráfico de drogas. Ela compartilhou sua história de vida, inclusive seu atual trabalho à frente de uma ONG voltada para o apoio, treinamento e empregabilidade de pessoas egressas. “É preciso que outros egressos tenho espaço como eu tive, para ter voz e reconhecimento, que junto com outras organizações, tais quais as Raesps [Rede de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional] e Pastorais Carcerárias, que encaram de frente a realidade de quem sobreviveu o sistema prisional.”
Interfaces entre saúde e direito
Na sala temática dedicada à análise das conexões entre o direito e a saúde, a professora Natália Priolli, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, delineou a redução de danos como um modelo clínico político voltado para promover comportamentos mais seguros, respeitando a tolerância das pessoas em relação ao uso de substâncias. Ela ressaltou a importância dos princípios pragmáticos, da diversidade e do respeito aos determinantes sociais da saúde, destacando serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e consultórios na rua, onde o tratamento é conduzido de forma colaborativa e centrada no usuário.
Fabio Esteves, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, enfatizou a necessidade de uma abordagem interdisciplinar entre direito e saúde na implementação de alternativas bem-sucedidas. “O sucesso das alternativas penais depende de uma rede de apoio que atenda as pessoas com dignidade e as capacite para cumprir essas medidas, beneficiando não apenas os indivíduos, mas também a sociedade e o judiciário”, apontou. O juiz compartilhou uma experiência em que a assistência adequada desempenhou um papel crucial no sucesso de uma alternativa penal e destacou a importância de superar a mentalidade punitiva em relação ao uso de substâncias, especialmente em meio às mudanças na legislação de drogas.
O membro da Associação de Amigos(as) e Familiares de Presos(as) de São Paulo, Fabio Pereira Campos, destacou a importância de buscar uma justiça social efetiva ao considerar a redução de danos. “É fundamental que a gente faça esse esforço para garantir cidadania e dignidade para essas pessoas antes que sejam criminalizadas, pois esses processos estão relacionados à desigualdade social, não ao crime”, defendeu.
Alternativas penais em casos de tráfico privilegiado
O Fonape também contou com a apresentação de trabalhos acadêmicos sobre alternativas penais e meios alternativos de resolução de conflitos no sistema penal, diversidade nas centrais de alternativas penais e a construção de plano de acompanhamento de medidas cautelares diversas da prisão realizada em Minas Gerais. Os trabalhos foram selecionados por meio de edital.
Um dos artigos falou sobre “Alternativas Penais e Judiciais no Tráfico Privilegiado”. Apresentado pelo defensor público federal Gabriel Saad Travassos, o artigo teve como objetivo investigar a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) no tráfico privilegiado como alternativa ao cárcere e a aplicação do princípio da não criminalização do tráfico de pessoas nos processos criminais.
O artigo trouxe ao debate possível resistência no oferecimento do ANPP nas hipóteses de tráfico privilegiado e questionou lacunas quanto à investigação probatória acerca do tráfico de pessoas presas por tráfico. Nesta sexta-feira (15/9), o CNJ lançou um levantamento inédito sobre o uso do ANPP no Brasil.
“Há relatos de pessoas que foram cooptadas com proposta de emprego em outro país e, no fim, viraram mulas do tráfico de drogas. Essas pessoas acabam presas e respondendo ao crime, mas não há nenhuma investigação sobre como essa pessoa foi parar ali e se houve tráfico de pessoas”, pontuou Travassos.
Impactos na população indígena
O último painel do dia teve o tema “Estratégia nacional para mitigação e reparação dos impactos do tráfico de drogas sobre populações indígenas e etnoterritórios”. Mediado por Ela Wiecko Volkmer de Castilho, procuradora da República aposentada e professora da Universidade de Brasília, contou com a presença de Jozileia Kaigang, chefe de gabinete do Ministério dos Povos Indígenas.
A gestora ressaltou a importância de não limitar o foco do tema apenas à região amazônica, destacando que o tráfico de drogas afeta populações indígenas em várias regiões do Brasil e expressou preocupação com a falta de presença efetiva do poder público nos territórios indígenas, que muitas vezes são usados como rotas pelos traficantes devido à ausência estatal.
Jozileia enfatizou a complexa interconexão entre o narcotráfico e outras atividades, como o garimpo ilegal, que resultam em violência, abuso sexual e lavagem de dinheiro nas terras indígenas. “Os conflitos gerados pelo tráfico de drogas envolvem diversos danos à vida dos povos indígenas e à vida dos seus defensores, como a perda do Dom Phillips e do Bruno Pereira”, comentou ao mencionar o jornalista britânico e o indigenista brasileiro assassinados em junho de 2022 no Amazonas.
Andrea Jane de Medeiros, juíza de direito do Tribunal de Justiça do Amazonas, relembrou a iniciativa do CNJ, a partir do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) e apoio técnico do Fazendo Justiça, do Tribunal de Justiça do Amazonas e da Escola da Magistratura do Amazonas (ESMAM), de promover a tradução de cartazes sobre audiências de custódia para línguas indígenas.
Andrea explicou que o projeto teve amplo alcance, traduzindo informações jurídicas para sete línguas indígenas, abrangendo várias aldeias e etnias. E detalhou alguns dos materiais traduzidos, incluindo cartazes informativos sobre direitos legais, como o direito ao silêncio, o direito a um tradutor e informações sobre violência policial e tornozeleiras eletrônicas. “Para além desses projetos, nós temos instituído no âmbito do Tribunal de Justiça do Amazonas um grupo de trabalho interinstitucional de direitos para os povos indígenas e justiça criminal”, contou a juíza. Segundo ela, a ação se conecta diretamente à Resolução n. 287, de 25 de junho de 2019, que estabelece procedimentos para o tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário.
Para Gabriela de Luca, diretora do Centro de Estudos em Drogas e Desenvolvimento Social Comunitário da representante da SENAD/UNODC, a participação ativa das comunidades indígenas é essencial na criação de soluções eficazes para esses desafios complexos. “Precisamos pensar nas organizações de base e como fortalecê-las para que estejam munidas de conhecimento jurídico, e não apenas falar em repressão”, disse.
Ela comentou ainda a importância de promover um desenvolvimento alternativo, levando em consideração as causas subjacentes que levam as comunidades a se envolverem no tráfico de drogas, como mudanças climáticas, marginalização e falta de acesso a serviços públicos. E, por fim, destacou a presença indígena em 86,7% dos municípios brasileiros, tornando crucial pensar soluções de acordo com as culturas e realidades de cada povo indígena.
Reveja o evento no canal do CNJ no YouTube
Painel 3
Painel 4
Painel 5
Sala temática 1
Sala temática 2
Texto: Isis Capistrano, Leonam Bernardo, Midiã Noelle, Natasha Cruz, Pedro Malavolta e Renata Assumpção
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias