29/05/2024 – Os impactos da pandemia da covid-19, os conflitos reiterados no Oriente Médio, a guerra da Ucrânia, desastres ambientais, crises econômicas e políticas. São vários os fatores que levam alguém a decidir deixar seu país em busca de uma condição de vida mais digna, melhor e justa em outro.
Segundo o levantamento mais recente da Organização das Nações Unidas (ONU), pelo menos 281 milhões de pessoas em todo o globo deixaram seus países nos últimos anos. O dado faz parte do Relatório Mundial sobre Migração de 2024, divulgado no início deste mês.
Na quinta reportagem da série especial “Trabalho Decente e Justiça em Países de Língua Portuguesa”, saiba como o tema está sendo tratado pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Graduação fora de casa a partir de uma parceria
Nascida em Cabo Verde, Monalisa Pires, de 33 anos, veio para o Brasil, ainda em 2010, cursar Biomedicina na Universidade Federal de Goiás (UFGO). Depois de formada, ela acabou conhecendo seu marido, Irineu, de Guiné-Bissau, e resolveu se mudar para Brasília.
Atualmente, ela é especialista em uma grande rede de laboratórios de análises clínicas e considera ter um salário justo pelas tarefas que desempenha. “Como eu já moro há mais de 10 anos no Brasil e meu filho nasceu aqui, optei por pedir a nacionalidade brasileira”, conta. “Sinto muita falta do meu país e da minha família, mas amo o Brasil e a diversidade cultural e gastronômica que encontramos aqui. Por isso decidi ficar mais alguns anos”.
Na época, havia uma parceria entre Brasil e Cabo Verde que facilitava a vinda de jovens para fazer cursos de graduação em universidades federais brasileiras. Foi assim com Monalisa e com várias outras pessoas de Cabo Verde e de outros países.
Atualmente, o Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG) concede bolsas de doutorado a naturais de países em desenvolvimento com os quais o Brasil tenha Acordo de Cooperação Educacional, Cultural ou de Ciência e Tecnologia. Além das passagens áreas, o governo brasileiro custeia os quatro anos de duração do curso.
Perfil de quem migra
Segundo o Relatório Mundial sobre Migração de 2024, nos últimos 20 anos, a quantidade de homens que migraram foi muito superior à de mulheres. Se em 2000 migraram 88 milhões de homens e 86 milhões de mulheres, em 2020 o número passou a ser de 146 milhões de pessoas do sexo masculino contra 135 milhões do sexo feminino. Já a faixa etária é semelhante entre os sexos: geralmente são pessoas entre 20 e 45 anos.
Ainda de acordo com a ONU, a migração é um “impulsionador de desenvolvimento humano e crescimento econômico”, já que o movimento é responsável pelo aumento de mais de 650% nas remessas internacionais de 128 bilhões para 831 bilhões de dólares entre 2000 e 2022. Ou seja, os trabalhadores saem de seus países em busca de uma condição financeira melhor e acabam enviando dinheiro para seus familiares que permaneceram em casa. Assim, as remessas acabam impactando diretamente o Produto Interno Bruto (PIB) de vários países em desenvolvimento.
O relatório da ONU detalha que, em 2022, Índia, México, China, Filipinas e Egito lideraram o ranking de países destinatários de remessas internacionais. Apenas a Índia recebeu cerca de 100 bilhões de dólares no período.
Dignidade da pessoa migrante
O ideal seria que cada país tivesse políticas públicas para receber migrantes de forma a adaptá-los à realidade local e oferecer condições mínimas para que possam trabalhar ou estudar com dignidade.
A Convenção 97 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do trabalho de migrantes, foi aprovada ainda em 1949, na 32ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho. No Brasil, a proteção está garantida desde 1966, quando a norma foi aprovada pelo Congresso Nacional e passou a fazer parte da legislação brasileira.
Governos devem garantir dignidade
No “Diálogo entre países de língua portuguesa sobre Justiça do Trabalho”, realizado em março no Tribunal Superior do Trabalho, o jornalista e professor da PUC-SP Leonardo Sakamoto provocou. “Governos não têm sido capazes de garantir a dignidade de trabalhadores migrantes, e muitas sociedades parecem que simplesmente não se importam”, enfatizou ao defender que migrar é um direito de qualquer pessoa.
Apoio governamental para quem quer mudar de país
O governo de Cabo Verde estima que pelo um milhão de pessoas nascidas no país vivam atualmente em outros locais do globo. A maior parte, cerca de 400 mil, está em Massachusetts, nos Estados Unidos. Mesmo perdendo vários habitantes todos os anos, Cabo Verde tem a política de auxiliar essas pessoas para que consigam se estabelecer em outros locais e se integrar a outros mercados de trabalho.
Segundo o procurador da ilha de Boa Vista, da Procuradoria-Geral da República de Cabo Verde, o país firmou acordos bilaterais com a França, para garantir autorizações de residência aos cabo-verdianos que já estão empregados, e com Portugal, autorizando que eles trabalhem no país por até três anos.
Altino Mendes destaca que a intenção do governo não é impedir que as pessoas saiam do país, mas garantir sua segurança mesmo em outros países:
Segurança social de quem chega
Já em Moçambique, quem acompanha a legalidade de atividades envolvendo o trabalho migratório é o Ministério Público, que tem competências semelhantes às do Ministério Público do Brasil. Em 2023, 22,9 mil estrangeiros trabalhavam de forma legal no país, a maior parte na capital, Maputo, e 2.586 deles já se inscreveram no sistema de segurança social moçambicano.
Segundo a procuradora Célia Jeremias, essa inscrição não é obrigatória, mas todos os imigrantes devem provar que estão inscritos em algum sistema de seguridade social de outro país. Ela destacou ainda que o Ministério Público também tem atuado para monitorar as condições de trabalho dos moçambicanos que resolvem deixar o país.
A maior parte deles parte para a África do Sul em busca de emprego em minas e no setor agrícola. “Atuamos no sentido de assegurar que essas empresas paguem aos nossos nacionais os salários, as pensões e os benefícios devidos. Mas ainda temos dificuldade em obter informações de outros países que recebem nossos habitantes”, assinala.
Mão de obra necessária para manter país em funcionamento
De acordo com Domingos Morais, juiz conselheiro da Secção Social do Supremo Tribunal de Portugal, desde a atualização da Constituição, em 1997, o país vem aprovando várias leis para garantir condições dignas e trabalho seguro aos estrangeiros que chegam ao país.
Portugal tem recebido uma grande quantidade de brasileiros. Dados do Ministério das Relações Exteriores de lá mostram que, atualmente, o país concentra uma das maiores comunidades brasileiras na Europa, com cerca de 360 mil pessoas.
Para facilitar a formalização desses migrantes, o governo português modificou a Lei de Nacionalidade em abril deste ano, permitindo que os estrangeiros que residem em Portugal por pelo menos cinco anos tenham direito à cidadania portuguesa. A partir de agora, o período de espera entre a manifestação de interesse na cidadania e a emissão da cidadania em si conta como parte desses cinco anos. Antes, apenas o período de residência legal (com todos os documentos completos) era levado em conta.
Para dar entrada na regularização, os estrangeiros precisam apresentar inscrição em sistema de previdência social do seu país de origem e contratos de trabalho em Portugal.
E a xenofobia?
Vários casos de preconceito contra brasileiros em Portugal têm sido publicados nas redes sociais, mas não há um número oficial de denúncias, nem lá nem aqui. A cabo verdiana Monalisa Pires, que você conheceu no início dessa reportagem, logo ao chegar ao Brasil, recebeu comentários maldosos sobre sua cor e seu jeito de se vestir, mas avalia que hoje os negros brasileiros estão mais esclarecidos sobre suas origens e sobre o que configura o racismo:
Experiência brasileira com a migração
O Brasil sempre recebeu grande número de migrantes ao longo da sua história. Para reunir direitos e deveres dessas pessoas, foi editada a Lei 13.445/2017, conhecida como Lei de Migração. Ela garante a igualdade de oportunidade e de tratamento a migrantes e seus familiares, além de acesso a serviços de saúde, educação e seguridade social, benefícios sociais e assistência jurídica.
Em 2022, o país recebeu 243,2 mil pedidos de autorização de residência, segundo o relatório Dados Consolidados da Imigração no Brasil 2023. Entre os estados que mais receberam migrantes estão Roraima (65 mil), São Paulo (50,7 mil), Amazonas (25,8 mil), Paraná (22,1 mil) e Santa Catarina (21,5 mil).
Muitos migrantes chegam ao país e solicitam primeiro o status de refugiado. De acordo com a ONU, refugiada é a pessoa que foge da guerra e necessita de proteção internacional. No Brasil, entre 2021 e 2022, o número de pedidos aumentou 67,9%, chegando a 50,5 mil solicitações. Lideram esse ranking os venezuelanos, os cubanos, os angolanos e os afegãos.
Exploração de mão de obra estrangeira
E quando esses migrantes não conseguem emitir vistos de trabalho ou documentos que os permitam trabalhar de forma legal? De acordo com a juíza Claudirene Andrade Ribeiro, do Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (MT), alguns casos de trabalho forçado ou em condições análogas à escravidão têm sido identificados no Brasil nos últimos anos.
A magistrada lembrou os episódios de bolivianos mantidos em situações de exploração em confecções no interior de São Paulo. “Eles são submetidos a jornadas exaustivas, muitas vezes superiores a 14, 16 horas de trabalho, vivendo e trabalhando em locais pequenos, sem ventilação, e sem receber salário fixo”, ressaltou. Ela enfatizou, porém, que o Ministério Público do Trabalho tem atuado em conjunto com auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego para resgatar essas pessoas.
Migrantes no trabalho formal
De acordo com dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o mercado de trabalho brasileiro formal, em 2022, criou mais de 35 mil vagas para estrangeiros. Venezuelanos (mais de 140 mil) e haitianos (mais de 60 mil) lideram esse ranking.
Esses profissionais atuam, principalmente, em frigoríficos de aves e suínos em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná. Mas também ocupam funções como faxineiros, serventes de obras e alimentadores de linhas de produção.
(Juliane Sacerdote/CF)
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