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Os problemas estruturais nos serviços de saúde podem ser acentuados pelo aumento da distribuição dos processos relacionados à saúde mental, que se intensificaram ainda mais com a pandemia do coronavírus e deixaram ainda mais evidentes a fragilidade da rede integrada de atendimento à saúde. “Temos visto, desde a pandemia, um aumento muito grande da judicialização da saúde mental”, disse, na manhã desta sexta-feira (6/10), o supervisor do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus), conselheiro Richard Pae Kim.
A observação foi feita na abertura do webinário “Saúde Mental e Demandas Judiciais: Ações Necessárias”, evento pensado para estimular o debate sobre assistência a pessoas com necessidades de tratamento e cuidados específicos. O evento reuniu virtualmente representantes dos três Poderes da República, do Ministério Público, das advocacias pública e privada e os especialistas na área da saúde mental.
O aumento da procura pelos serviços de saúde na área da psiquiatria, a crescente judicialização de demandas por esse atendimento especializado e a necessidade imperativa dos magistrados de compreenderem melhor esse fenômeno são o pano de fundo das apresentações dos palestrantes do evento. “Temos de levar em conta as bases científicas, a medicina baseada em evidência, a fim de que os juízes do nosso país possam decidir bem, inclusive em sede de pedido liminar, razão pela qual os debates e informações que serão obtidos deste evento, deverão ser levados em consideração para a construção das políticas judiciária para o tratamento adequado dessas demandas”, comentou Pae Kim.
Diretora do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Carmen Guariente falou sobre a necessidade de solucionar um problema crônico do Sistema Único de Saúde (SUS), o subfinanciamento. “No atual modelo, a gente não vai conseguir atender, de forma alguma, as necessidades. A demanda por saúde mental aumentou muito, com razão, a população é imediatista e os municípios estão sozinhos para financiar a prestação desses serviços”, pontuou.
Aporte
O Coordenador -geral de Normas, Estudos e Projetos da Rede de Atenção Psicossocial do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, João Mendes de Lima Júnior enumerou as iniciativas da pasta para que o orçamento federal da saúde atinja 6% do produto interno bruto (PIB) brasileiro – atualmente alcança 4%. “Há todo um trabalho no sentido de recompor o orçamento que financia ações para a saúde mental e que terá, em 2024, um aporte de 9%”, anunciou.
Mendes citou convênio com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para a formação de até 43 mil profissionais que deverão prestar assistência a usuários de drogas e a egressos de hospitais de custódia. “Reafirmo o compromisso do governo federal e do Ministério com a retomada dos princípios, com os fundamentos, com os valores da reforma psiquiátrica brasileira em todos os sentidos, na indução de um novo modelo e na construção de uma nova política de financiamento”, disse o representante do Ministério da Saúde.
Tecnologia x infância
Outro tema discutido no evento foi o impacto dos avanços tecnológicos nas crianças e nos adolescentes. Juízes, médicos e especialistas em neurociência e pediatria abordaram os impactos das novas tecnologias no desenvolvimento cerebral da criança e do adolescente. “Plataformas digitais têm causado prejuízos ao desenvolvimento psicológico e psiquiátrico de crianças e jovens brasileiros. Aqueles que estão na primeira infância, que deveriam estar brincando, desenvolvendo-se em espaços abertos, com outras crianças, estão sendo expostas aos dispositivos digitais durante muito tempo e muito precocemente”, afirmou o neuropediatra da Fiocruz Eduardo Jorge da Silva.
Membro do grupo Ética, Segurança, Saúde e Educação (E.S.S.E Mundo Digital), ele reforçou que as crianças precisam se desenvolver jogando bola, brincando de massinha ou conversando com os amigos, ou seja, longe das telas. Eduardo Jorge destacou que as telas não são inimigas, mas que é preciso saber utilizá-las. “O convívio social é a experiência mais importante do ser humano. Não há substituo para o parquinho para as crianças”, afirmou o neuropediatra e especialista em neurologia.
“A dependência digital gera dopamina, hormônio da recompensa. É uma dependência que age do mesmo modo qualquer vício, como sexo, compras, álcool ou fumo. Elas têm um impacto muito sério no cérebro das crianças e adolescentes e seu uso precisa ser mediado. Não é impedir – essa é a pior das estratégias – nem tirar a privacidade dos jovens. Mas buscar interagir com eles, para que recebam amor, empatia, cuidado e limites”, explicou.
A pediatra Evelyn Eisenstein, membro do Centro de Estudos Integrados Infância, Adolescência e Saúde (Ceiias/RJ), concorda o colega a respeito do abuso em relação ao uso de telas. “Para sobreviver, a criança precisa de nutrição (amamentação e alimentação), sono (para criar padrão do repouso-vigília, produzindo ciclo circadiano da produção de hormônios; exercícios (movimento de controle interno e externo das funções fisiológicas e desenvolvimento neural/psicomotor), assim como de afeto (apego, amor, redes de confiança e de relacionamentos). E isso não se encontra em nenhuma imagem de tela”, apontou.
Neurodireitos
A procuradora do estado de São Paulo (MPSP) Camila Pintarelli chamou atenção para a necessária proteção legal da mente humana, de forma que essa questão esteja incluída entre os direitos que os cidadãos possam contar. Os chamados neurodireitos seriam proteções legais propostas para preservar a privacidade cerebral, a identidade e o livre arbítrio dos cidadãos.
“Estamos diante de um novo bem jurídico a ser tutelado: a mente humana. E não estamos tratando de ficção científica, mas de realidade. Os tratados internacionais mundiais ainda não conferem essa contribuição à integração mental do ser humano, mas ela é urgente”, afirmou a especialista, que citou exemplos de projetos que já estão em andamento e visam mapear o cérebro humano. Muitos com objetivos científicos, mas outros tantos com cunho financeiro.
Camila Pintarelli citou dados da Unesco que mostram – entre 2010 e 2021 – ter havido investimentos superiores a U$ 33 bilhões em pesquisas públicas e privadas nessa área. Segundo ela, nos últimos 10 anos, o número de patentes em neurotecnologia mais do que dobrou. “Atualmente, há 18 bigtechs já utilizando neurotecnologia, que visam conhecer e manipular nosso cérebro com interesses econômicos. Se só o excesso de telas já estava interferindo negativamente, esse novo futuro que se descortina é ainda mais perigoso”, alertou.
Texto: Luís Cláudio Cicci e Regina Bandeira
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias