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Pesquisa para investigar o falecimento de pessoas que foram expostas ao ambiente prisional mostra que a letalidade é, de fato, uma possibilidade real para quem, no Brasil, se torna uma pessoa sob a custódia estatal, ou seja, um detento ou uma detenta, por cometer um crime. A taxa de detecção de tuberculose nas prisões chega a ser 30 vezes maior do que a observada na população em liberdade. E o risco de morte por caquexia, ou enfraquecimento extremo, é de 1.350% maior entre quem está na cadeia do que na população em geral.
O levantamento “Letalidade prisional: uma questão de justiça e saúde pública”, encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no âmbito da quinta edição da série Justiça Pesquisa, sintetiza essa realidade dos espaços de privação de liberdade do Brasil: morre-se muito, sabe-se pouco, registra-se quase nada; praticamente não se responsabiliza, tampouco se repara. Mesmo com o retorno ao convívio social, essa marca da passagem pelo cárcere resiste. O tempo médio de vida das pessoas depois que saem da prisão é de 548 dias e 28% dessas mortes ocorreram em eventos violentos.
A vulnerabilidade dessas pessoas sob custódia foi evidenciada durante o Seminário de Pesquisas Empíricas Aplicadas a Políticas Judiciárias promovido pelo CNJ na quinta-feira (11/5), com transmissão pelo canal do CNJ no YouTube. O juiz auxiliar da Presidência Luís Lanfredi, que também coordena o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, chamou a atenção para os danos causados às pessoas que se encontram em espaços prisionais. “Temos números e dados que devem nos reorientar sobre a forma como o sistema prisional e o sistema de Justiça Criminal devem funcionar. Não restam dúvidas sobre a letalidade do sistema prisional, não somente no risco à vida, mas também por sua capacidade de neutralizar a pessoa”, afirmou.
O secretário Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ, Ricardo Fioreze, também participou do seminário e destacou que o estudo representa a estratégia adotada pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ) e pelo próprio CNJ de realizar pesquisas empíricas que possam ser aplicadas às políticas judiciárias. “Os estudos permitem a aplicação do conhecimento acadêmico e científico por aqueles que estejam diretamente envolvidos no exercício da atividade jurisdicional. No entanto, a pesquisa não pode ser exclusivamente teórica ou doutrinária é preciso também que ela apresente propostas de aperfeiçoamento das políticas judiciárias”, defendeu.
O relatório do CNJ se propôs a detalhar a gravidade dos problemas que caracterizam a gestão carcerária e socioeducativa no Brasil e revela indícios de subnotificação de mortes, bem como aponta para a necessidade de aprimoramento da administração penitenciária, em especial quanto à oferta de serviços de saúde às pessoas sob custódia estatal. Entre as 36 providências recomendadas ao final do documento, está o enfrentamento e a superação de graves e sistemáticas violações dos direitos humanos por meio de ações coordenadas, principalmente a mobilização de juízes, juízas e tribunais, para garantir direitos e medidas estratégicas.
Definhamento
As responsáveis pelo trabalho são duas professoras: as coordenadoras acadêmicas Maíra Rocha Machado, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Natália Pires de Vasconcelos, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). A pesquisa considerou mais de 112 mil casos como universo de análise, em que houve, entre os anos de 2017 e 2021, a extinção de punibilidade por falecimento da pessoa custodiada. A intenção foi identificar, nessa base de dados, pessoas que passaram pelo sistema prisional, faleceram e que tiveram a morte identificada nos processos pela extinção da punibilidade.
Na apresentação dos dados, as pesquisadoras destacaram, entre outros aspectos, as causas da letalidade prisional provocada por morbidades como tuberculose, sífilis, suicídios e outras mortes violentas. De acordo com elas, estar em uma prisão piora os indicadores de saúde a longo prazo, acelerando o envelhecimento das pessoas.
Com isso a chamada morte natural é, na verdade, o resultado de um longo e tortuoso processo de adoecimento, falta de assistência, definhamento e óbito. Dos falecimentos dentro das cadeias que foram alvo da pesquisa, 62% tiveram como causa a insuficiência cardíaca; a sepse, ou infecção generalizada; a pneumonia; e a tuberculose. A asfixia mecânica, o estrangulamento ou sufocação indireta e as asfixias não especificadas representam, conforme o estudo, 15% dos casos. As mortes causadas por ferimento de arma de fogo e a agressão por objetos cortantes, penetrantes, perfurantes ou contundentes dentro da unidade prisional, somadas às mortes por enforcamento indireto, chegam a 25%.
Para realizar o trabalho, a equipe de pesquisa lidou com dificuldades porque há problemas comuns na comunicação e no registro do óbito, na garantia de direitos à pessoa custodiada e aos seus familiares, bem como na produção de dados estatísticos de mortes em estabelecimento prisional, hospital de internação psiquiátrica ou durante a saída temporária. O relatório informa que o controle inexistente ou ineficaz de informações sobre as mortes em estabelecimentos de custódia e sobre as violações dos direitos humanos, em grande parte, decorrentes da violência estatal ou da precariedade das ações de promoção de saúde, forma a face invisível e mais dramática do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, declarado no ano de 2015 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Negligências
Uma das debatedoras, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Karen Luise Vilanova Batista de Souza, destacou a sensibilidade de toda a equipe ao trazer relatos de histórias com as quais as pesquisadoras entraram em contato. A magistrada afirmou que os relatos ilustram o que de fato significa a ausência de um número, das certidões de óbito, de declarações ou de informações das pessoas privadas de liberdade que perderam suas vidas no ambiente interno ou externo às prisões.
A juíza fez ponderações ao trecho da pesquisa que trata do gênero das pessoas que morreram no ambiente interno. Dados do estudo apontam que 1,7% dessas pessoas é do sexo feminino e mais de 1,7% seria de outros gêneros não especificados, como pessoas trans, travestis e população LGBTQIA+. “Esses números são similares, embora a população do gênero feminino seja muito maior. Isso demonstra o grau de vulnerabilidade desses sujeitos que têm outras designações no sistema prisional. É uma informação importante e mais uma bandeira vermelha que se levanta”, disse.
Outro ponto levantado pela juíza Karen diz respeito às divergências quanto à questão racial. As informações dos registros desses indivíduos durante a investigação policial, no processo judicial e na execução criminal, não convergem e não dialogam com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, em sua avaliação, não é possível traçar o perfil racial das pessoas que morrem, embora a maioria das pessoas encarceradas no país seja preta ou parda. “Isso demonstra como o Estado negligencia não só o dado, mas o próprio indivíduo. Existe um acúmulo de omissões”, lamentou.
Em sua intervenção, a debatedora Valdirene Daufemback, que é psicóloga e coordenadora geral do Programa Fazendo Justiça (CNJ/Pnud), avaliou o tratamento que o Estado dispensa àqueles que respondem a processos e encontram-se sob vigilância. “Essa custódia, em um conceito mais ampliado, que inclui não apenas prisão, mas também pessoas sob monitoramento eletrônico, revelou ser palco e agente de morte. Um ambiente que permite a ocorrência desses casos, que não são triviais e não são comuns em outros espaços, geram mecanismos de ocultação desse cenário”, constatou.
Pandemia
A pesquisa também apresenta análises sobre como as condições precárias de higiene e de permanência das prisões propiciam a disseminação de enfermidades. As consequências da pandemia de coronavírus que chamaram a atenção para a fragilidade da assistência que as instituições penitenciárias prestam foram a suspensão das visitas e a interrupção de atendimentos médicos e da distribuição de medicamentos, as quais fizeram aumentar o número de pessoas desnutridas e dos óbitos. Essa observação consta em um relatório feito pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (Mepct/RJ) e foi citada na pesquisa encomendada pelo CNJ como relacionada ao quadro de monotonia alimentar, agravado pela falta da comida levada pelos familiares aos detentos.
Texto: Luis Cláudio Cicci e Ana Moura
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias