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Os desafios da socioeducação, a necessidade de escuta ativa de adolescentes em cumprimento de medida e o envolvimento do sistema de justiça na garantia de direitos pautaram o primeiro dia do Encontro da Justiça Juvenil, realizado na sede do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na terça-feira (4). Representantes da magistratura, servidores e servidoras do Acre, Amapá, Amazonas, Rondônia e Roraima compartilharam experiências e participaram de momento especial: a leitura, por parte de duas mulheres egressas do sistema socioeducativo, de trechos de cartas de adolescentes em cumprimento de medida escritas especialmente para os juízes do encontro.
Para o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, Luís Lanfredi, a realização de um evento desta magnitude, com um espaço exclusivo de debate sobre a socioeducação, apenas evidencia a centralidade que essa pauta ocupa há anos neste Departamento. “Não é possível discutirmos a privação de liberdade de maneira ampla sem nos questionarmos quais respostas estamos oferecendo a esses jovens e adolescentes, que necessitam de um encaminhamento focado em oportunidades, aprendizagem, em processos de formação e de transformação sua realidade pessoal”.
O juiz auxiliar da Presidência do CNJ com atuação no DMF Edinaldo César Santos Júnior destacou aos presentes a importância da atuação em rede. “O trabalho do juiz é muito solitário. Mas quando falamos de Infância e Juventude, estamos falando de uma experiência que poucos magistrados podem ter: o de trabalhar em rede, de exercitar a escuta. Nenhuma normativa determina que ouçamos os protagonistas nesses processos, os adolescentes. Porém, esse é o nosso dever. Não há hipótese de se fazer socioeducação sem escuta ativa, sem que estejamos cotidianamente comprometidos a ouvir esses jovens”.
O evento é realizado pelo CNJ no âmbito do programa Fazendo Justiça, parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para acelerar transformações e qualificar respostas no campo da privação de liberdade. A atuação do Fazendo Justiça no sistema socioeducativo conta com oito frentes de ação, contemplando desde as Audiências Concentradas, o combate à tortura nas inspeções judiciais e o acompanhamento dos adolescentes pós-medida socioeducativa. Conheça todas as iniciativas, aqui.
Rodas temáticas
As unidades de internação brasileiras têm hoje 12 mil jovens e adolescentes. Mais de 99% são do sexo masculino, 55% têm entre 16 e 17 anos e 8 mil deles são autodeclarados pretos ou pardos. “Em sua maioria, são pessoas pretas e pobres que têm seu primeiro contato com o Estado na hora em que começam a cumprir a medida. Iniciativas como o Núcleo de Atendimento Integrado (NAI), por exemplo, que visam qualificar o atendimento humanizado ao qual esse jovem tem direito, não estabelecem nada além do que já está disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, explicou a coordenadora do Eixo Socioeducativo do programa Fazendo Justiça, Fernanda Givisiez.
A dinâmica do evento permitiu que os magistrados e magistradas de cinco estados do Norte não apenas tivessem acesso a um panorama nacional do sistema, mas também compartilhassem suas experiências no território e participassem de rodas de conversa temáticas a respeito do dia a dia de um juiz da socioeducação. O envolvimento dos atores institucionais do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) nas ações da área esteve presente no debate. “Muitas vezes esse sistema funciona em parte, mas não como rede. Se o adolescente tem uma questão de saúde mental, será que tem direito a um benefício do INSS? Ele sabe disso, tem acesso? Só a rede é capaz de identificar essas necessidades, ver para onde esse adolescente deve ser encaminhado”, aponta o coordenador-geral da Coordenadoria de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, desembargador Isaías Fonseca.
Supervisor do GMF do Tribunal de Justiça do Amapá, o desembargador João Guilherme Lages Mendes ressaltou a importância do próprio juiz e seu papel como parte do SGD. “O que podemos fazer para garantir o envolvimento do juiz na rede? Congregar a rede. Ver onde há deficiências e chamar à responsabilidade todos que possam gerir e superar essas deficiências”.
Denúncias sobre tratamentos vexatórios e situações de tortura vividas pelos adolescentes também permearam muitas conversas. “Diferentemente do adulto, que traz um entendimento maior sobre ter sido ou não torturado, o adolescente chega na audiência de apresentação mais fragilizado, vulnerável. Nem sempre aquilo está claro ou ele tem coragem de falar. A solução é que toda audiência seja preparada pensando no grau de acurácia de todos os seus quesitos, com perguntas não-simplificadas que contemplem todo o rol de respostas”, diz o coordenador do GMF do TJ do Amapá, João Teixeira de Matos Júnior.
Cartas e emoção
Ainda na manhã de terça-feira, os juízes, juízas e servidores presentes ao encontro se emocionaram com a participação no evento da pesquisadora e escritora Ravena do Carmo, e da integrante da equipe técnica do Eixo Socioeducativo do Fazendo Justiça, Iasmim Baima. Egressas do sistema socioeducativo, elas contaram um pouco da experiência no período de internação – o trauma pelo barulho dos cadeados e portas se fechando as acompanha até hoje. A trajetória de vida depois do cumprimento da medida foi de sucesso para as duas, mas não sem dificuldades – tanto Iasmin quanto Ravena relembram os momentos de choro e a sensação de não pertencerem a determinados ambientes, como o universitário.
As duas se dividiram na leitura de trechos das mais de 100 cartas enviadas por jovens e adolescentes em unidades de internação dos estados de origem dos magistrados e magistradas presentes, que receberam as cartas dos respectivos estados ao final.
“[…] Durante minha audiência, não havia ninguém da minha família presente, mas entendi tudo que foi explicado. Acho que todos que não tem condição deveriam ter direito a um advogado presente e no momento que a pessoa for apreendida eles já deveriam avisar aos familiares. […]
“Sou um menino trans, tenho 17 anos (…). Me encontro na unidade há 7 meses (…). Em liberdade, me encontrava estudando, fazendo 2º ano do Ensino Médio, morava junto da minha vó, mãe e tios. Tenho 7 irmãos e gosto muito deles. Adoro cozinhar! […] Eu não sou o ato infracional”.
“E por mais que eu cometi um ato infracional, mas também tinha que ver os dois lados porque foi minha primeira infração. […] Fiquei triste quando soube que ia pegar uma internação, pois estou perdendo o acompanhamento da gravidez da minha mulher.”
Contato próximo
As pessoas participantes discutiram metodologias e especificidades das inspeções judiciais no socioeducativo – recentemente qualificadas por meio do novo CNIUPS, elaborado com apoio técnico do Fazendo Justiça. “O magistrado precisa estar na unidade rotineiramente. Não é em uma hora nem um dia por mês que teremos abertura com o adolescente, que vamos perceber coisas que acontecem quando damos as costas”, destaca a juíza Andrea da Silva Brito, coordenadora do GMF do Tribunal de Justiça do Estado do Acre. “Além disso, inspeção não é só visitar os espaços de privação de liberdade, é conhecer todo o fluxo. É o momento da delegacia, as condições da apreensão, como foi o exame de corpo de delito”, completa.
Leia o Manual Resolução CNJ 77/2009 Inspeções Judiciais em unidades de atendimento socioeducativo.
Apesar de a presença do juiz ou juíza ser imprescindível no momento da inspeção, o juiz da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima Marcelo Lima de Oliveira não abre mão da ajuda da equipe para uma visita mais produtiva. “Já soube de casos em que, enquanto o juiz está em um bloco, os adolescentes dos demais blocos eram ameaçados para não falar. Por isso temos que ir à unidade não só várias vezes como de surpresa, com servidores presentes em diversos pontos da unidade para coibir esse tipo de coisa”. Oliveira acredita que a reavaliação da medida socioeducativa nada mais é que o ponto culminante desse conhecimento aprofundado do percurso do adolescente. “É o resultado do contato dos últimos seis meses com aquele jovem, com seus relatórios, sua trajetória ali dentro. Na reavaliação dou oportunidade para que o adolescente não apenas me responda perguntas, mas me convença da sua evolução”, diz.
Capacitação
O Encontro da Justiça Juvenil se estenderá até 18 de julho, com mais quatro encontros. Os próximos dias de evento terão a presença de juízes e juízas de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Paraíba, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Paraná, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Su, Pará, Tocantins, Rio Grande do Sul e São Paulo. Os dias anteriores aos encontros do sistema socioeducativo são dedicados à discussão dos Grupos de Monitoramento e Fiscalização dos tribunais, seu funcionamento e incidências no campo penal e socioeducativo.
“Esta comunicação, esta troca de conhecimento entre os magistrados, ver a experiência de um e de outro e como isso se adequa a seu estado é muito importante”, sublinha o coordenador da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, desembargador Gilberto Pinheiro. “Este conhecimento que vocês estão nos repassando nós temos a obrigação de também repassar para a ponta”, afirma, endossado pelo titular do Juizado da Infância e Juventude Infracional da Comarca de Manaus (Amazonas), Eliezer Fernandes Júnior. “Nosso estado é continental. O CNJ nos traz informações, dados, métodos e como aplicá-los no nosso trabalho não só nas medidas socioeducativas, mas no plano humano”.
Confira os depoimentos de representantes da Justiça Juvenil que participaram do primeiro dia do evento: juiz Eliezer Fernandes Júnior (Infância e Juventude/TJAM), desembargador Gilberto Pinheiro (coordenador de Infância e Juventude/TJAP), desembargador Isaías Fonseca (coordenador de Infância e Juventude/TJRO), juiz Marcelo Oliveira (coordenador de Infância e Juventude/TJRR), juiz Mateus Santini (Infância e Juventude/TJAC).
Texto: Nataly Costa
Edição: Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias