Quem observa uma prisão do lado de fora pode pensar que, no interior daqueles muros, há apenas um grupo de condenados ou de presos provisórios, reféns de suas próprias escolhas. Lá dentro, contudo, é possível conhecer não somente um detento, seu crime e seu tempo de pena, mas um Carlos que deseja se tornar professor, uma Maria que pretende ser pintora, uma Lúcia, antes chamada Caio, que quer ser escritora – indivíduos que, se não podem mudar o passado, talvez consigam transformar suas histórias ao saírem dali.
Subjugadas ao cárcere, é muito fácil que essas pessoas sejam privadas não apenas de sua liberdade, mas de sua identidade, de seu rosto, de sua voz. A invisibilidade vem de dentro da prisão – muitas vezes em celas lotadas, um amontoado de pessoas indistintas – e, também, do pensamento muito difundido de que, para quem cometeu um crime, o pagamento deve ser eterno, e o silêncio é a melhor solução.
Na direção contrária, o ministro Sebastião Reis Júnior, integrante de colegiados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) especializados em direito penal (a Terceira Seção e a Sexta Turma), decidiu visitar presídios em diferentes estados brasileiros para conhecer as iniciativas adotadas na recuperação dos presos, e aproveitou para captar a humanidade que sobrevive em cada um deles.
Com o auxílio de uma máquina fotográfica, o magistrado quer mostrar a vida das pessoas que habitam o cárcere, e compreender, nesse processo, algo sobre as suas histórias, as suas angústias, as suas esperanças.
Se os registros fotográficos vão render, no futuro, uma exposição itinerante, os encontros do ministro Sebastião – aplicador da lei penal em um tribunal superior – com os detentos – ofensores dessa mesma lei – resultam em muitos outros significados para aqueles que participam do sistema prisional: juízes da execução penal, diretores de presídios, detentos e para o próprio ministro.
Nos meses de agosto e setembro, a equipe da Comunicação Social do STJ acompanhou o ministro em três dessas visitas: no Centro de Detenção Provisória Pinheiros II, em São Paulo; e nas Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs) localizadas em Belo Horizonte e em São João Del Rei, ambas em Minas Gerais.
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Em vez de revolta, poemas
O ministro que ingressa na unidade prisional não usa terno ou gravata, não é escoltado por nenhum segurança (nas Apacs, inclusive, não há vigilância armada), tampouco mantém qualquer distância dos detentos – alguns dos quais, possivelmente, tiveram processos julgados por ele: naquele momento, o magistrado é apenas um homem curioso, buscando captar detalhes sobre a vida dos indivíduos e os espaços onde eles cumprem suas sentenças.
A máquina fotográfica, porém, não é o único meio com o qual o ministro Sebastião procura conhecer a realidade do cárcere. Ao longo dos corredores, visitando as celas e passeando pelos pátios da prisão, ele conversa atentamente com os apenados, fazendo perguntas, escutando os seus relatos, anotando alguma informação sobre queixas específicas, como excessos no tempo de cumprimento de pena.
Ingressando no cárcere, há uma expectativa de que alguns daqueles presos, muitas vezes inconformados com as penas recebidas, nutram um sentimento de revolta contra o sistema e, de alguma forma, reajam negativamente à visita de um magistrado criminal. Na realidade, o que Sebastião recebe, além de olhares atentos, é uma recepção calorosa. Na Apac de Belo Horizonte, uma das presas corre a recitar para o magistrado um poema feito há pouco, e brinca sobre não saber qual “ministério” aquele ministro ocupa, mas diz ter a certeza de que ele é bem-vindo no presídio.
Em Pinheiros, no Centro de Detenção Provisória II, a costumeira figura formal do juiz se quebrou em meio ao abraço das 35 detentas transexuais que aguardam sentença no local. O ensaio fotográfico no jardim cuidado por elas mesmas foi “dia de festa”, nas palavras do diretor-geral Ernani Mangelo Izzo. “É muita alegria ter um momento assim. São pessoas que cometeram erros, sim, mas também foram muito maltratadas na vida. Quando alguém olha para elas, faz muita diferença”, afirma.
Em contraste com os tons claros do uniforme branco e bege, as presas apostaram nos coloridos dos batons emprestados e nas sobrancelhas bem delineadas. “Não dá para sair feia na foto do ministro, né?”, comentou uma. Outra fez questão de se alongar para exibir à câmera o melhor passo de balé clássico que sabe.
Para o ministro do STJ, ver de perto a realidade das pessoas que cumprem pena é fazer valer a máxima muito conhecida, mas nem sempre considerada na prática, de que há uma pessoa por trás de cada processo penal. Para os juízes, lembra, “as ações não têm capa” – uma referência ao princípio da imparcialidade –, mas isso não significa esquecer a vida que está sendo definida a cada julgamento.
“Eu já vi presídios de segurança máxima, presídios tradicionais, presídios com propostas inovadoras, e o juiz precisa ter consciência de que, ao decidir, ele pode estar encaminhando uma pessoa para aquele estabelecimento. Ele tem que saber o que vai acontecer, ter noção da consequência da decisão dele”, resume o ministro.
Confira o vídeo com o relato do ministro Sebastião Reis Júnior sobre a sua visita aos presídios
No curso dessas visitas, Sebastião reforçou a sua impressão de que o juiz precisa sair do gabinete para que, ao enxergar a realidade do sistema, aprimore sua capacidade e sua autoridade como julgador.
Como objetivo principal, o ministro pretende dar voz e rosto àquelas pessoas que estão no cárcere, e mostrar indivíduos que buscam ter uma vida diferente depois que deixar as celas. “Eles erraram, estão pagando pelos seus erros, mas têm o direito de recomeçar, de retomar a vida”, define.
Juiz e Santo Agostinho concordam: visita é motivo de esperança
Titular da Vara de Execuções Penais de Belo Horizonte, o juiz Luiz Carlos Rezende – que também é presidente da Associação dos Magistrados Mineiros – faz da visão do ministro Sebastião o seu ofício, visitando regularmente as unidades prisionais da capital mineira e coordenando assuntos relacionados às Apacs.
Para descrever a ida do ministro do STJ aos presídios, o juiz cita uma frase de Santo Agostinho, o filósofo para quem “as coisas só têm significado quando nós verdadeiramente as conhecemos”. Na opinião de Luiz Carlos Rezende, o contato direto entre o magistrado de uma corte superior e os presos “traz luz e esperança”, porque se trata de alguém com condições de reverberar, em todo o país, as iniciativas que têm sido realizadas em Minas Gerais, em especial no tocante à atuação das Apacs.
“A presença do ministro Sebastião realmente nos emociona, nos entusiasma e nos enche de confiança de que este é um projeto que deve continuar sendo aprimorado e evoluído para todo o Brasil”, afirma.
Na cartilha dos adjetivos possíveis, o diretor da Apac de São João Del Rei, Antônio Carlos Fuzatto, escolheu “fantástico” para definir o encontro entre o ministro e os detentos. Não é uma escolha aleatória: para Fuzatto, muitas vezes, o juiz pouco sabe sobre o local em que o réu vai cumprir a pena, o significado do sistema prisional como um todo, ou as iniciativas das pessoas que, na ponta do sistema, trabalham diariamente para recuperar os presos.
“É importante conversar com os presos, entendê-los. É importante que o magistrado tenha noção do que acontece no presídio em relação à educação, à remição de pena, ao reconhecimento de direitos. O juiz não pode apenas dar uma pena e colocar a pessoa na prisão. É importante que ele entenda esse processo”, ressalta.
O que pensa o reeducando que quer ser professor
As imagens captadas pelo ministro, o entusiasmo do juiz da execução penal em relação às Apacs, a luta diária do diretor do presídio: em comum, todas essas perspectivas revelam a preocupação desses atores com a dignidade do preso e com a sua ressocialização.
E qual é o sentimento de quem recebe a atenção de todas essas pessoas? Como a presença inesperada de um membro de uma corte superior no cárcere pode influenciar a vida de quem cumpre pena? A resposta vem de Carlos Roberto de Melo, que chegou à prisão com a quinta série do ensino fundamental e, hoje, após as oportunidades recebidas na Apac de São João Del Rei, está terminando o curso de mestrado na Universidade de São Paulo (USP).
Cumprindo pena há mais de 20 anos, dez deles na Apac – onde hoje trabalha, sob livramento condicional –, Carlos sabe a importância de pessoas que não enxerguem no preso apenas um mal a ser dissipado, mas alguém que pode se transformar após “resolver a sua dívida com a sociedade” – como os detentos gostam de dizer.
Ao encontrar o ministro Sebastião e ter a chance de lhe contar sua história, o reeducando diz que não viu nele a figura do magistrado, mas do ser humano – o que não é pouco em um ambiente conhecido pela desumanidade.
“Me disseram que ele não pareceu ser juiz, mas é que ele nos tratou como igual, se posicionou como um ser humano – um filho, um marido –, como alguém que está buscando a crença no ser humano”, resume Carlos, que pretende ser professor no futuro.
De humanos para humanos – sejam julgadores ou julgados, ministros ou apenados –, saem todos mais crentes na transformação das pessoas envolvidas com a realidade do cárcere, estejam elas dentro ou fora de seus muros.