Artigo: Pandemia Covid-19 e os Direitos Fundamentais à Alimentação, à Vida e à Saúde e a especificidade da primeira infância

Portal O Judiciário Redação
Fachada do TJAM (Foto: Divulgação/TJAM)

 

E estando com idade inferior a 6 anos ou em idade gestacional, a situação é ainda mais crítica. Isso porque o século XXI foi próspero no desenvolvimento da ciência e as descobertas da neurociência e da economia, que indicam que ao não receber a nutrição necessária e/ou envolvimento emocional adequado dos pais e a estimulação linguística e psicomotora fundamentais ao desenvolvimento físico e mental, estas crianças não terão as bases físicas e cerebrais necessárias aos aprendizados posteriores e sofrerão déficits cognitivos e emocionais de quase impossível superação na fase adulta, com efeitos que não só ficarão para a pessoa com o desenvolvimento comprometido, como passará às suas gerações e impactará inclusive o desempenho no nível educacional e de violência do país.
Em razão das descobertas científicas é que surgiu o movimento intelectual e da sociedade civil organizada para a redação e a aprovação da Lei da Primeira Infância, que aprovada, garante no art. 5º o prioritário atendimento do indispensável para o desenvolvimento da formação do feto, em gestação, assim como da criança pequena, dos zero aos seis anos, que são a nutrição alimentar e a saúde, definindo como fundamental ao desenvolvimento emocional sadio, por meio da educação infantil, da convivência familiar e comunitária, da assistência social à sua família e do acesso à cultura, do direito de brincar e gozar de lazer em ambiente propício e protegido de acidentes, de violências e da exposição precoce ao consumo.
A Lei define a obrigatoriedade de programas destinados ao fortalecimento das famílias, centrados na criança, focadas na família, na comunidade e prioritárias às famílias e crianças/adolescentes identificadas em situação de vulnerabilidade, risco ou com direitos violados e em situação de deficiência, identificadas pelo Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme art. 14, §2º, da Lei 13.257/2016.
E, apesar do Governo publicar que o programa atende 754 mil crianças e gestantes de todo o Brasil, atingindo o número de 20 milhões de visitas, não são todos os municípios beneficiários e o fato é que as demais crianças, cujas famílias não eram beneficiadas pelo bolsa família, estão completamente fora dos valores liberados pelo Governo Federal, de R$600,00 para apoio e também não recebem a visita do Programa Criança Feliz pelo mesmo motivo.
Pior, caso seus pais não tenham preenchido os requisitos para o recebimento do apoio de R$600,00, sancionados pela Lei n. 13.982/2020, não saibam preencher o aplicativo da Caixa Econômica Federal ou não tenham sequer acesso cognitivo e material para acessar um aplicativo ou solucionar eventual falta de requisitos, como terem o CPF cancelado, por exemplo, ficarão completamente abandonados pelo apoio financeiro e o resultado será invariavelmente a fome das suas crianças.
Isso porque os requisitos para o recebimento do benefício, por três meses, são: ser maior de 18 (dezoito) anos de idade; não ter emprego formal ativo; não ser titular de benefício previdenciário, assistencial, seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado, nos termos dos §§ 1º e 2º, o Bolsa Família; ter renda familiar mensal per capita inferior meio salário-mínimo ou a renda familiar mensal total de até 3 salários mínimos; no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos).
E, ainda, caso exerça atividade na condição de: microempreendedor individual (MEI); contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social ou trabalhador informal, empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, ou que, nos termos de autodeclaração, cumpra o requisito do inciso IV.
Para os que não sejam inscritos no CadÙnico, deverão fazer o cadastro por meio de plataforma digital e ainda que consigam preencher a prova de todos os requisitos usando o aplicativo, podem não ter o benefício liberado.
Outro ponto a se pensar é dos que nem tentam acessar o aplicativo, afinal, justamente à margem da sociedade digital, estão os grupos que não tiveram estudo suficiente à cognição necessária para compreender os mecanismos de um aplicativo e compreensão dos direitos ali assegurados, contudo, são os mais necessitados neste momento, por decorrência lógica da estrutura de emprego e renda da pós-modernidade.
Já a fome não cumpre requisitos, não é diária, mas horária, cobrando seu crédito a cada duas horas em média, nas crianças pequenas, às quais não compreendem a espera e cujo sofrimento pela dor e pela angústia são potencializados pela falta de instrumentos cerebrais ainda em formação, que são necessários para serem recrutados no momento de compreensão dos acontecimentos externos e internos.
Diante da complexidade do tema e dos argumentos expostos, angariados do Direito Constitucional, do Direito da Criança e do Adolescente, do Direito Civil e dos dados oficiais do Governo Federal no controle à pandemia da Covid-19, além das notícias veiculadas pelos canais oficiais de jornalismo, apresentamos as seguintes considerações:
a) O Estado da Arte em abril de 2020 indica que pandemia da Covid-19 é facilmente transmitida no contato direto entre as pessoas, pelo ar e por objetos, enquanto os testes rápidos para a confirmação do diagnóstico deixam uma janela de 7 a 10 dias, nos quais a pessoa pode não ter sintomas, mas pode transmitir a doença ou mesmo tendo sintomas, podem não ser captados seus anticorpos no exame, enquanto que o exame biológico tem a detecção mais segura, porém é mais demorado e a cada dia sem conhecimento, os seres humanos podem infectar outras pessoas;
b) Não há vacinas, tampouco um remédio eficaz e seguro para todos, mas os casos aumentam a cada dia no Brasil, assim como o número de mortes, de forma que sair de casa pode representar um risco pessoal e também à família;
c) O drama familiar pelas perdas dos entes amados é adicionado à impossibilidade de velar o corpo e fazer uma despedida respeitosa, potencializado pelo trauma pela perda do emprego e/ou da renda, mais a insegurança de um futuro complemente incerto;
d) A Constituição Federal de 1988 alçou à categoria jurídica a fraternidade, ao definir os valores da sociedade fraterna e pluralista, sem preconceitos, fundada na harmonia social e com base nos objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e das desigualdades e a promoção do bem de todos, portanto, o Estado, por meio dos seus três poderes, responsabiliza-se na concretização destes valores, nos quais a dignidade da pessoa humana é elemento fundamental, daí advindo os demais direitos fundamentais, especialmente o direito à alimentação, vida e à saúde, os quais cabe ao Estado prover;
e) O Direito da Criança e Adolescente garante, pela Constituição Federal de 1988, pela Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e leis posteriores, o direito à alimentação, à vida, à saúde e à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes brasileiras e estrangeiras residentes no Brasil, sendo ainda mais prioritária na garantia da nutrição adequada às gestantes e às crianças de zero a 6 anos, conforme preconiza a Lei da Primeira Infância, de forma que a falta de alimentos para o desenvolvimento saudável deve ser suprida pela família, pela sociedade e pelo Estado, no tripé de sustentação de obrigações prioritárias, das quais as crianças e adolescentes são credores;
f) Na falta de nutrição adequada em razão da família da criança e do adolescente, não cabe a separação da criança da sua família, mas o apoio, por meio de políticas públicas adequadas à solução imediata, em prioridade absoluta e cujo crédito vence a cada duas horas, na ordem de forme das crianças e adolescentes;
g) Cabe à sociedade brasileira também contribuir de forma fraterna e solidária no sustento das crianças e adolescentes brasileiros, contudo, dada a dificuldade de circulação e as proteções necessárias para que a sociedade organizada leve o alimento às crianças e adolescentes que necessitem, cabe ao Estado prover o alimento e também propiciar que a sociedade contribua, sendo ao mesmo tempo canalizador no recebimento das doações e responsável pela sua entrega segura, adequada e organizada, para que nenhuma criança e adolescente seja deixado para trás.
h) O Governo Federal lançou o programa de contribuição dos R$ 600,00, mas cabe aos Municípios diligenciar para contribuir para que seus munícipes mais frágeis sejam ajudados no preenchimento dos requisitos do programa, como também, ofereça o auxílio direto de alimentos e material de higiene para aqueles que não conseguiram acessar e faça seu cadastro paralelo para aferir se quem recebeu teve condições de suprir todas as necessidades de sua família, principalmente, comprometa-se a garantir que nenhuma criança e adolescente de seu município passe fome. Caso necessário, deverá o Município buscar apoio para políticas públicas de alimentação e higiene mais amplas junto ao Governo do Estado e ao Governo Federal, para servir como ampliação e, inclusive, como avaliação da necessidade da manutenção do benefício além dos três meses fixados pela União, pois a retomada econômica, a volta dos empregos e o fim da doença ainda são incertos, contudo, há a certeza da fome das crianças e adolescentes, cuja família não acesse os benefícios ou os acessando, sejam insuficientes para alimentar toda a família, portanto o único requisito para receber a alimentação deve ser: a necessidade.
i) Caso o Estado falhe em sua obrigação, a começar pelo Município e suas ações e solicitações de apoio aos demais entes e à sociedade, a Responsabilidade Civil do Estado poderá ser extraída a partir dano presumido, sempre que o fator fome estiver presente. O nexo de causalidade entre a falta de alimentos e a quarentena obrigatória ou necessária para proteção à saúde resta mais que evidenciada e a culpa é dispensável, pois a Responsabilidade Civil do Estado é objetiva e, ainda que precisasse comprovar a culpa, é presumida, pois cabe ao Estado a obrigação de proteção de sua população, em especial, a população mais indefesa, frágil e que possui um organismo físico e emocional ainda em pleno desenvolvimento e cuja falta de nutrição adequada poderá causar prejuízos para o resto da vida de cada um e, no futuro, impactará as novas gerações e o próprio desempenho no nível educacional e de violência Estado Brasileiro.
 
Autoras:
Joana Ribeiro é Especialista em Processo Civil pelo sistema LFG (2018). Mestranda em Direito pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Juíza de Direito em Santa Catarina desde 2004. Membro do Conselho Consultivo da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Santa Catarina desde 2013 (CEIJ/TJSC).
Josiane Rose Petry Veronese é Professora Titular da Disciplina de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre e Doutora em Direito pela UFSC, com pós-doutorado pela PUC Serviço Social/RS. Professora dos Programas de Mestrado e Doutorado do Curso de Pós-Graduação em Direito/UFSC. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente. Em estágio de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, sob a supervisão do Prof. Dr. Airton Cerqueira-Leite Seelaender. Acadêmica da Cadeira n. 1, da Academia de Letras de Biguaçu/SC.
 
Fonte: emporiododireito.comImagem: Portal CNJ
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