Os dois painéis do período da tarde do seminário “Por estas e por outras”, realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta sexta-feira, apresentaram uma visão multifacetada do tema proposto: debater a justiça sob a perspectiva feminina.
O painel “Dignidades/Indignidades: Ser no Mundo”, coordenado pela ministra Ellen Gracie, tratou das desigualdades nos contextos interno e internacional. Ao longo dos debates, a ministra destacou que um mundo mais inclusivo, onde as mulheres tenham voz, será mais pacífico e mais próspero. “Não utilizar os talentos femininos significa um enorme desperdício”, afirmou.
Mãe Terra
A advogada Samara Pataxó, ao tratar do tema “Feminino verde: as matas e as mortes”, ressaltou que a missão de proteger a Mãe Terra, diante dos atuais perigos e das atuais ameaças ao meio ambiente, não pode estar apenas sob responsabilidade dos povos indígenas. Nesse sentido, o manifesto Reflorestamentes, lançado pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), é um chamado urgente para que a sociedade, em uníssono, cuide da Mãe Terra como cuida dos seus próprios corpos e espíritos.
Segundo Samara, não há como pensar em soluções para crises climáticas e seus desdobramentos sem priorizar a proteção das terras indígenas. Outro importante passo nessa luta, destacou, é superar ideologias preconceituosas, como a que acredita que terras indígenas são improdutivas ou que há muita terra para pouco índio. “A sociedade em geral não vai conseguir adiar o fim do mundo se não valorizar e escutar o que os povos indígenas têm a dizer”, disse.
Identidade
A cantora Zélia Duncan, ao apresentar seu olhar sobre a “Construção cultural da igualdade”, fez uma defesa forte da cultura como a que entrega pensamento, abstração e repertório interno, possibilitando ao povo escolher com responsabilidade e liberdade os seus caminhos. “Cultura é o que construímos todo dia sem saber, até que se transforma em nossa identidade, nossa tradição, nossa língua, nossos sotaques, saberes e sabores. Cultura é nossa impressão digital”, disse.
Zélia também falou sobre corpo e gênero como um evento cultural. Ela afirmou que nenhuma opção de gênero é natural ou tem a ver com natureza, mas com cultura. Para a artista, a cultura, combinada com educação, políticas públicas e acesso, seria indestrutível. Leia a íntegra da exposião de Zélia Duncan.
Metas
A embaixadora do Canadá no Brasil, Jennifer May, na sua palestra “Um olhar internacional sobre a violência contra a mulher”, compartilhou alguns exemplos de como o Canadá tem contribuído para alcançar a meta de eliminar a violência baseada em gênero. “O país condena a misoginia e o sexismo em todas as suas formas”, disse.
Além disso, segundo a embaixadora, seu país tem uma política externa feminista desde 2017, que coloca igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e meninas no centro de sua cooperação internacional.
No Brasil, May afirmou que um terço dos projetos apoiados pelo Fundo Canadá abordam o tema. “Trata-se de uma revolução feminista silenciosa, que objetiva promover a igualdade de gênero como a maneira mais eficaz de reduzir a pobreza, aumentar a autonomia feminina e construir um mundo mais inclusivo, pacífico e próspero”.
Violência
A jornalista Ana Paula Araújo, no painel “A desigualdade (que) violenta”, falou de seu processo de quatro anos de pesquisa para escrever o livro “Abuso: a cultura de estupro no Brasil”, em que ouviu vítimas, criminosos, advogados e médicos de todos os cantos do país. “São histórias que estão no nosso cotidiano, mas que não podemos naturalizar. O tabu, o silêncio e a falta de informação impedem que as mulheres se protejam”.
A jornalista disse que uma característica comum a todas as histórias ouvidas é a tentativa da sociedade de transferir a culpa para a vítima. Ela relatou um dos casos citados no livro, em que uma mulher estuprada passou por “uma verdadeira via crucis” na tentativa de encontrar justiça. Segundo o relato, ela sofreu violência institucional tanto na delegacia quanto no atendimento hospitalar, quando, grávida do seu agressor, buscou o direito de realizar um aborto.
O painel “Passados e não passados”, coordenado pela ministra Rosa Weber, reuniu história, saúde e educação.
Perspectiva histórica
A escritora e historiadora Heloísa Murgel Starling abriu o terceiro painel lembrando o exemplo de personagens femininas que se destacaram por sua atuação política e revolucionária na luta pela igualdade de gênero. Entre elas, citou a primeira presa política do Brasil, Bárbara de Alencar.
A escritora fez um apanhado histórico das conquistas das mulheres brasileiras, a exemplo do voto, e observou que, para elas, a fronteira da política é a mais difícil de transpor e continua assim nos dias de hoje. Segundo Heloísa Starling, as mulheres precisam falar por si mesmas e ter o reconhecimento igual na sociedade.
Acesso à saúde
A neurocientista e pesquisadora Lúcia Willadino Braga, presidente da Rede Sarah, falou sobre a história da mulher na saúde e sua atuação nas guerras, quando foram autorizadas a ocupar esse espaço para cuidar dos homens. Segundo ela, foi uma mulher que observou a importância dos protocolos de higiene – a exemplo da higienização, do isolamento e uso das máscaras – que continuam tão relevantes atualmente.
Conforme a pesquisadora, também foi uma mulher quem criou a primeira escola de enfermagem. A presidente da Rede Sarah também contou a história de Maria Augusta Estrela, primeira médica brasileira, que precisou ir para os Estados Unidos fazer o curso. Segundo ela, dos seis milhões de profissionais da saúde, 65% são mulheres, e a força de trabalho feminina no enfrentamento da covid-19 representou 80% do total de profissionais envolvidos.
Educação e democracia
Encerrando o painel, a professora Ana Frazão, da Universidade de Brasília (UnB), salientou que há um grande caminho para a conquista de uma educação igualitária. Segundo ela, a sociedade brasileira vive uma crise em sua democracia, com a corrosão gradativa das instituições, e a falha na democracia está possivelmente relacionada à falha na educação.
Para a professora, a educação é um processo amplo, que não diz respeito apenas à transmissão de pensamentos, mas tem o objetivo de trazer à tona conhecimentos, habilidades e capacidades, a fim de que as pessoas saibam viver em sociedade e tenham acesso a diversos valores. Nesse contexto, ela observou que, embora tenham as mesmas capacidades que os homens, as mulheres tendem a conquistar menos, em razão de travas sociais. Por isso, é necessário que a educação explore o potencial de mulheres e meninas. “O sujeito que é privado de educação é privado de si mesmo”, concluiu.
SP, EC//CF
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10/12/2021 – Primeiro painel do seminário “Por estas e por outras” destaca desigualdades enfrentadas pelas mulheres no país