Certa vez, o escritor italiano Italo Calvino afirmou que “cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário”. No caso da vida da ministra Maria Thereza de Assis Moura, essa biblioteca é formada por um conjunto de livros que ajudam a contar sua trajetória até a presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cargo em que será empossada na próxima quinta-feira (25).
Na vida profissional, o livro narra a história da advogada de longa atuação, conhecida pela seriedade e pela visão humana na defesa das causas; na academia, as linhas são sobre a professora doutora da Universidade de São Paulo (USP), estudiosa e autora de diversas obras de direito penal; na magistratura, a enciclopédia descreve a capacidade técnica de uma ministra que, desde sua posse no STJ, em agosto de 2006, foi relatora em mais de 148 mil processos, deixando por meio deles – e de tantos outros – sua marca na jurisprudência do tribunal.
As páginas mais recentes são sobre a corregedora nacional de Justiça que, nos últimos dois anos, apesar de receber no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) uma média de 32 processos por dia útil, deixou o menor número de casos pendentes desde 2008.
Mas há uma obra, em especial, que ajuda a compreender com ainda mais profundidade quem é a ministra Maria Thereza: esse livro é escrito pelas pessoas que, sob diferentes perspectivas, compartilharam de perto sua vida acadêmica e profissional.
Seriedade e rigor técnico
Quando ainda exercia a magistratura no Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Alberto Silva Franco, hoje com 90 anos, conheceu a então advogada Maria Thereza e se impressionou com sua seriedade e seu rigor técnico. Anos depois, já aposentado, ele estreitou os contatos com a jurista e professora quando o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) foi fundado, em 1992 – o instituto completa 30 anos em 2022.
Mesmo depois que a advogada se tornou ministra do STJ, em 2006, Alberto Franco continuou acompanhando seu trabalho. Na atividade jurisdicional, ele destaca, em especial, o papel desempenhado em defesa dos direitos humanos e a sensibilidade como juíza. “Ela tem transferido para as suas decisões todas as suas qualidades pessoais”, afirma.
O desembargador aposentado aposta na capacidade de conciliação e diálogo da ministra para exercer a presidência do STJ. “Mesmo diante de divergências, ela consegue estabelecer uma forma de conviver, cultivando a simplicidade, mas também mantendo firmes as suas convicções. Será uma presidente com poder de evitar problemas na corte e de reunir as pessoas em um clima amigável”, projeta.
Pesquisadora séria, professora querida
Foi entre pesquisas científicas e fatias de pizza que o professor e advogado Maurício Zanoide de Moraes conheceu e se tornou amigo da ministra Maria Thereza – ele iniciava o mestrado, em 1993, enquanto ela ingressava no doutorado em direito na Universidade de São Paulo (Usp). Na pós-graduação, Zanoide lembra da colega como uma pesquisadora séria e ativa, capaz de facilitar os estudos pela sua habilidade com várias línguas.
Em concursos distintos, Zanoide e Maria Thereza se tornaram professores da Faculdade de Direito da Usp, ambos na área penal. Mantendo a atuação como pesquisadora, recorda Zanoide, Maria Thereza se tornou uma professora muito querida pelos alunos, especialmente pela excelente didática e pela preocupação em ensinar.
Interessada em dar aos alunos uma dimensão prática da área criminal – entre outras funções, Maria Thereza trabalhou na Fundação de Assistência ao Preso de São Paulo (Funap) –, Maurício Zanoide lembra de um episódio em que a professora propôs à turma de graduação uma atividade de dosimetria penal, mas ficou assustada com as penas elevadas sugeridas pelos estudantes.
Os dois professores, então, convidaram os alunos para visitar o presídio do Carandiru – hoje desativado – e conhecer as condições reais do sistema carcerário brasileiro. “Depois dessa visita, as penas sugeridas pelos alunos foram totalmente diferentes, porque passaram a considerar não só a lei, mas a realidade do sistema”, relembra.
Além da academia, Zanoide e Maria Thereza atuaram juntos na advocacia e dirigiram o IBCCRIM, quando a então advogada foi escolhida para integrar o STJ, em 2006. Reforçando sua personalidade séria, aponta Zanoide, a ministra pediu para que fosse registrado no tribunal o seu impedimento em qualquer processo relacionado ao advogado ou ao seu escritório.
Sobre a chegada da ministra à presidência do STJ, o professor não tem dúvidas: “Ela vai fazer o STJ ser ainda mais o tribunal do cidadão brasileiro. Talvez, ela tenha sido vocacionada a vida inteira para, agora, presidir o Tribunal da Cidadania”. Sobre o futuro, Zanoide espera apenas voltar a compartilhar mais pizzas com a amiga.
O aluno e a professora
Hoje colegas de STJ, a ministra Maria Thereza e o ministro Rogerio Schietti Cruz se conheceram muito antes de entrarem no tribunal, quando estavam na Faculdade de Direito da Usp: ainda membro do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Schietti ingressou no programa de mestrado e, assim, passou a ter contato com Maria Thereza, professora de direito processual penal.
Na faculdade, lembra o ministro, a docente participou de sua banca de qualificação no mestrado e atuava em uma das disciplinas na qual ele era estudante. Os dois voltaram a se encontrar quando ele exerceu a função de procurador-geral de Justiça do DF e, por último, no STJ.
Schietti ingressou no tribunal em 2013, sete anos depois da ministra, e foi para a Sexta Turma, reencontrando a sua professora exatamente na cadeira ao lado – ela, como uma das magistradas mais antigas do colegiado; ele, como o membro mais recente.
O ministro descreve a colega como “uma magistrada, acima de tudo, cuidadosa”. Não só nos processos dos quais é relatora, mas em todos os que são julgados, Schietti ressalta a atenção da ministra com a análise de cada caso, de forma técnica e dedicada. “Dificilmente escapa dela algum detalhe do processo”, afirma.
Para Schietti, mesmo após tantos anos na atividade jurisdicional, Maria Thereza ainda guarda em si muito da professora que ele conheceu nos tempos da Usp. Sobre a presidência do STJ, o ministro antevê a administração de Maria Thereza marcada pelo respeito à legalidade e pela condução técnica do tribunal.
Pelas mãos da ministra, o início no STJ
Logo em seus primeiros dias de atuação no STJ, em 2011, o ministro Sebastião Reis Júnior soube quem era a ministra Maria Thereza por um gesto de companheirismo: após a sua posse, o magistrado foi designado para integrar a Sexta Turma – colegiado que, à época, era presidido pela ministra. Quando se preparava para a sua primeira sessão, ele foi surpreendido em seu gabinete pela presidente da turma, que chegava para acompanhá-lo até a sala de julgamentos.
“Eu estava ansioso por participar da minha primeira sessão, e a ministra Maria Thereza veio até mim e, ainda sem me conhecer, sem nenhuma obrigação de fazer isso, me conduziu até a turma. Foi uma demonstração de carinho e atenção que me marcou muito, porque passei a me sentir em casa”, recorda o ministro.
Os dois atuaram juntos na Sexta Turma até 2018, quando a ministra deixou o colegiado para se tornar vice-presidente do STJ. Nos sete anos em que integraram a mesma turma, o ministro Sebastião conheceu uma “magistrada excepcional” que, segundo ele, tem amplo conhecimento técnico, respeito pela atividade jurisdicional e uma enorme dedicação ao trabalho.
“Ela leva muito a sério o fato de ser juíza, então se preocupa com o processo, estuda o caso, se prepara para uma sessão, se prepara para um debate”, diz o ministro.
Segundo Sebastião Reis Júnior, mesmo após sair da Sexta Turma, a magistrada deixou no colegiado uma marca importante: a defesa dos argumentos de forma respeitosa e cordial, ainda que os posicionamentos dos colegas sejam divergentes. “Ela sabe como funciona um colegiado, então sabe defender os seus pontos de vista sem subir o tom, sempre de forma profissional”, resume.
Para o ministro, é exatamente essa capacidade de lidar com opiniões diferentes que vai permitir a Maria Thereza conduzir bem o STJ, além do respeito que desfruta entre os membros da corte e do auxílio que terá do próximo vice-presidente, ministro Og Fernandes. “Ela é uma trabalhadora incansável; se já vivia intensamente o tribunal, agora viverá ainda mais”, afirma.
Uma juíza nata
Os primeiros contatos entre Maria Thereza de Assis Moura e o ministro Herman Benjamin ocorreram quando os dois estavam prestes a ingressar no STJ – a posse dele no tribunal aconteceu apenas um mês depois da investidura da ministra. Rapidamente, recorda o ministro, os dois perceberam as suas semelhanças na forma de enxergar a República, na necessidade de garantir proteção aos mais vulneráveis e na concordância sobre a missão do Judiciário.
Próximos nessas ideias, os dois ministros atuaram durante muitos anos em áreas distintas no STJ: ele, na Segunda Turma e na Primeira Seção, especializadas em direito público; ela, na Sexta Turma e na Terceira Seção, competentes para a análise de causas de direito penal. Apenas quando ambos chegaram à Corte Especial é que passaram a dividir a tarefa de julgar.
“Maria Thereza é uma juíza nata. O juiz nato é aquele que enxerga na atividade de julgar não um poder, mas uma responsabilidade. Ela também é capaz de ouvir – o juiz que só fala e que pouco ouve não é um bom julgador. Apesar de ser professora doutora pela USP, ela não traz uma arrogância acadêmica no trato pessoal e na convivência dos colegiados. Com humildade, ela não diz que é professora e que estudou profundamente alguns dos temas debatidos em julgamento: nós é que sempre lembramos”, descreve o ministro.
Outra característica destacada por Herman Benjamin é a suavidade de Maria Thereza no trato com as pessoas, costumeiramente se despindo da posição de ministra de um tribunal superior para, segundo ela própria, ser “a mais comum das mortais”.
O ministro também enxerga Maria Thereza como um modelo para os mais jovens, especialmente por ser uma ministra com origem na advocacia dos mais vulneráveis, na defesa dos direitos humanos daqueles que já estavam condenados e encarcerados. “Ela conviveu com os guetos do desrespeito à dignidade da pessoa humana, que são exatamente as cadeias públicas, onde os direitos fundamentais não passam de uma miragem”, ressalta.
Sobre a ascensão da ministra à presidência do STJ, Herman Benjamin indica algumas tendências: o foco na magistratura e a orientação dos juízes brasileiros, além da maior inserção do STJ na comunidade internacional – uma consequência do próprio perfil da magistrada, que, entre outras funções, integra a Comissão de Ética da Cúpula Judicial Ibero-Americana. “Hoje, as maiores questões jurídicas não são locais ou nacionais, mas globais, e Maria Thereza sabe que nosso direito não é uma ilha.”
De corregedora para corregedora
Ao rememorar os 16 anos de convivência com Maria Thereza no STJ, a ministra Nancy Andrighi retorna aos primeiros dias de contato com a nova colega de tribunal, para ressaltar o impacto que lhe causou a capacidade daquela advogada em se adaptar rapidamente ao exercício da magistratura, “como se fora uma atividade que sempre desempenhara”.
Mais antiga no STJ (tomou posse na corte em 1999), Nancy Andrighi atuou em funções do Judiciário que, anos depois, também seriam exercidas pela ministra Maria Thereza, a exemplo do cargo de corregedora nacional de Justiça – exercido por uma entre 2014 e 2016, e pela outra desde 2020.
Segundo Nancy Andrighi, a corregedoria do CNJ é uma das funções mais complexas exercidas na carreira da magistratura, mas, mesmo com todos os desafios, Maria Thereza se consagrou no cargo como uma juíza capaz de tomar decisões enérgicas para garantir o bom funcionamento do Judiciário – sem perder, contudo, o cuidado e a ponderação antes de aplicar alguma medida punitiva.
“Essa postura discreta e, ao mesmo tempo, imperativa tornou ímpar o desempenho da ministra Maria Thereza, deixando a marca da juíza corregedora ideal”, define Nancy Andrighi.
Na sua visão, a experiência no CNJ indica o que esperar da ministra Maria Thereza na presidência do STJ. Além de enfatizar a capacidade técnica e a seriedade da próxima presidente, a colega exalta o orgulho de ver uma mulher à frente do Tribunal da Cidadania – exemplo na luta contra as desigualdades de gênero e inspiração para meninas e mulheres de todo o Brasil.
Depoimentos, números e trajetórias
Do extenso currículo aos relatos de quem viu esse currículo ser construído, passando pelos números que refletem a dedicação ao trabalho: todos esses elementos ajudam a montar, como sugeriu Italo Calvino, o inventário da trajetória da ministra Maria Thereza até a presidência do STJ.
Dentro dos 148 mil processos dos quais foi relatora no STJ, a magistrada proferiu uma média de mais de 10 mil decisões por ano entre 2007 – primeiro ano completo de sua atuação no tribunal – e 2018 – quando deixou a Sexta Turma e a Terceira Seção para assumir a vice-presidência da corte.
Da quantidade à qualidade: Maria Thereza de Assis Moura marcou posições jurídicas importantes no STJ, tendo sido relatora, por exemplo, de 21 recursos repetitivos, nos quais são fixadas teses que se tornam precedentes qualificados para orientar a atuação de juízes e tribunais em todo o país.
A ministra é citada em mais de 500 casos destacados no Informativo de Jurisprudência, boletim produzido pela Secretaria de Jurisprudência do STJ com as teses mais importantes, selecionadas pela novidade no âmbito do tribunal e pela repercussão no meio jurídico.
No CNJ, em conjunto com os elevados números de produtividade, a atual corregedora nacional de Justiça participou de projetos estratégicos relevantes, como o Portal Transparência da Corregedoria Nacional, a atualização do sistema Justiça Aberta e as ações para a erradicação do sub-registro civil.
Além da atuação no STJ e no CNJ, Maria Thereza também foi corregedora-geral da Justiça Federal (2018-2020), diretora-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam (2016-2018) e ministra efetiva do Tribunal Superior Eleitoral (2014-2016), onde exerceu o cargo de corregedora-geral eleitoral (2015-2016).