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STJ ultrapassa 2 milhões de recursos especiais em meio a esforço para resgatar sua missão constitucional

Redação O Judiciário

A promulgação da Emenda Constitucional 125, que cria o requisito da relevância para a admissão do recurso especial, veio em um ano marcante na história do Superior Tribunal de Justiça (STJ): instalada em abril de 1989, a corte viu o número de processos crescer de forma vertiginosa ao longo desses 33 anos e, em maio, registrou o recurso especial de número 2.000.000.

A marca intensificou o debate sobre um dos principais entraves à atividade judicial no Brasil. Se, por um lado, o STJ se modernizou e passou a ser capaz de julgar muito mais, por outro, o excessivo número de processos recebidos fez com que se distanciasse de seu papel uniformizador da jurisprudência infraconstitucional, ocupando-se cada vez mais da função de terceira instância revisora de causas cujo interesse é restrito às partes.

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Para o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, os atores do mundo jurídico precisam se conscientizar de que o acesso ao Poder Judiciário por meio dos recursos de natureza especial tem finalidade específica delineada pela Constituição Federal de 1988, a qual atribuiu à corte a incumbência de unificar a interpretação da legislação federal.

Sobre os 2 milhões de recursos especiais, ele afirmou que “essa marca representa a confiança da sociedade em suas instituições, mas também um problema e uma grande responsabilidade, pois as controvérsias sem maior repercussão na uniformização da jurisprudência acabam assoberbando os órgãos de superposição do Poder Judiciário”.

O empenho para garantir uma prestação jurisdicional uniforme, eficiente e justa

O recurso especial é a mais importante classe processual das várias que se enquadram na competência do Tribunal da Cidadania, relacionando-se diretamente com a missão constitucional da corte e com a própria razão de sua criação pela Constituinte de 1987-1988. Resultou do desmembramento do recurso extraordinário, que manteve no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento de questões constitucionais e transferiu a uma nova corte, o STJ, a tarefa de analisar supostas violações da lei federal e de uniformizar nacionalmente a sua aplicação.

O STJ chegou ao recurso especial de número 1.000.000 em 2007, 18 anos após receber seu primeiro processo, em maio de 1989, mas precisou de três anos a menos para atingir a marca de 2 milhões nessa classe processual.​​​​​​​​​

Em 2021, o STJ recebeu 408.770 processos (de todas as classes) e julgou 427.906. Apesar da redução do estoque nos últimos anos, a demanda alta prejudica o cumprimento da missão preponderante da corte.

Diante do grande volume de demandas submetidas aos tribunais brasileiros, o Poder Judiciário tem buscado formas de reduzir a judicialização – como o incentivo à mediação, à conciliação e à arbitragem – e outros meios de proteger o papel institucional de cada órgão julgador.

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Um dos instrumentos adotados pelo STJ para preservar o seu papel de corte de precedentes foi, desde o princípio, a Súmula 7. Segundo o enunciado, aprovado pouco mais de um ano após a instalação da corte, “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. Isso significa que, no julgamento desse recurso, não cabe ao STJ reapreciar fatos nem reexaminar provas, mas, sim, analisar questões eminentemente jurídicas.

Nas palavras do ministro Luis Felipe Salomão (AgInt no REsp 1.677.653), “o recurso especial tem como escopo a defesa da higidez do direito objetivo e a unificação da jurisprudência em matéria infraconstitucional, não se admitindo que o STJ funcione como mera instância revisora, pois não é essa sua missão constitucional”.

Novas ferramentas para dar mais rapidez e segurança à Justiça

O empenho por um sistema processual mais racional, que também envolve os Poderes Legislativo e Executivo, teve um grande momento em 2015, com a promulgação do novo Código de Processo Civil (CPC/2015).

Sem prejuízo dos esforços já empreendidos por meio do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973) e de suas reformas para garantir a celeridade processual e a segurança jurídica, o CPC/2015 trouxe ferramentas inovadoras e aperfeiçoou o sistema de julgamento das demandas de massa ou que envolvam relevantes questões de direito. Nessa nova ordem processual, destaca-se a disciplina do recurso repetitivo, do Incidente de Assunção de Competência (IAC) e do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).

Conforme a exposição de motivos do CPC/2015, “criaram-se figuras para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional”.

Possibilidade de suspensão dos processos que tratem de idêntica questão

No recurso repetitivo, o STJ define uma tese para ser aplicada aos processos em que se discute idêntica questão de direito. A escolha do processo para ser julgado como repetitivo pode recair em recurso indicado pelo tribunal de origem como representativo de controvérsia (artigo 256-I do Regimento Interno do STJ – RISTJ) ou em recurso já em tramitação na corte superior.

Como inovação, o CPC/2015 trouxe a possibilidade de suspensão do processamento das demais ações que versem sobre o mesmo tema jurídico. Com isso, evita-se a reforma em instâncias superiores para a aplicação da tese, uma vez que os processos aguardarão o julgamento do repetitivo.

Para aperfeiçoar o sistema de precedentes qualificados, que fortalecem a jurisprudência e evitam a multiplicação de recursos sobre questões idênticas, foram criados no STJ a Comissão Gestora de Precedentes (Cogepac) e o Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas (Nugepnac).

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A Cogepac, atualmente presidida pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, tem como missão coordenar os procedimentos administrativos relacionados ao julgamento de casos repetitivos, de IAC, de Suspensão em IRDR (SIRDR), bem como ao monitoramento e à sistematização das informações relativas ao julgamento das ações coletivas no âmbito do Tribunal da Cidadania. 

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Já o Nugepnac, unidade vinculada ao gabinete da Presidência, é responsável pela gestão da sistemática dos precedentes qualificados previstos no CPC/2015 – repercussão geral, recursos repetitivos, IAC e SIRDR –, bem como por fortalecer o monitoramento e a busca de eficácia no julgamento das ações coletivas. 

Observância dos precedentes melhora o desempenho das instâncias ordinárias

“Nos últimos anos, pudemos observar a sensível melhoria da gestão dos recursos repetitivos no âmbito do STJ, inclusive com a possibilidade do emprego da inteligência artificial para a identificação de casos que concentram grande volume de processos cuja discussão de fundo é a mesma”, afirmou o presidente do STJ durante a abertura da Semana Jurídica da Universidade Santo Amaro (Unisa), em outubro de 2020.​​​​​​​​​

Desde a criação do recurso repetitivo pela Lei 11.672/2008 e até o encerramento do primeiro semestre deste ano, o STJ julgou 896 temas. No mesmo período, também foram julgados 12 IACs.

No mesmo evento, Humberto Martins destacou que “a efetiva observância dos precedentes judiciais não somente auxiliará o STJ, enquanto unificador da jurisprudência infraconstitucional, como também trará mais segurança e produtividade aos juízos de primeiro e segundo graus, que terão um norte para seguir quando se depararem com teses jurídicas firmadas nas instâncias superiores”.

Sobre a vinculação, o ministro ponderou que “é irrefutável a necessidade de destacar a força vinculante dos precedentes formados nos tribunais brasileiros e seu impacto na uniformização da jurisprudência pátria”.

Para prevenir ou compor divergência entre órgãos julgadores

Segundo o artigo 947 do CPC/2015, é admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos, bem como quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a ##prevenção## ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal.

“Com efeito, o novel incidente, nascido de disposição expressa do Código de Processo Civil, destina-se, entre outros fins, à ##prevenção## e à composição de divergência jurisprudencial, cujos efeitos são inegavelmente perversos para a segurança jurídica e para a previsibilidade do sistema processual”. A afirmação foi feita pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do primeiro IAC em recurso especial (REsp 1.604.412) admitido pelo STJ.

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Na ocasião, a Terceira Turma discutia os seguintes temas: cabimento da prescrição intercorrente e a eventual imprescindibilidade de intimação prévia do credor; e necessidade de oportunidade para o autor dar andamento ao processo paralisado por prazo superior àquele previsto para a prescrição da pretensão veiculada na demanda.

Com a aprovação do incidente, a Segunda Seção passou a ser responsável pelo julgamento do caso. A propor a assunção de competência, Bellizze destacou a relevância das questões jurídicas e a divergência de entendimentos entre a Terceira e a Quarta Turmas do tribunal, especializadas em direito privado.

Assim como os recursos especiais repetitivos e os enunciados de súmula do STJ, os acórdãos proferidos em julgamento de IAC são identificados como precedentes qualificados (artigo 121-A do Regimento Interno do STJ). Na prática, isso significa que as teses adotadas em assunção de competência devem ser observadas de forma estrita por juízes e tribunais.

Uma solução na origem para questões com potencial repetitivo

Criado com inspiração no direito alemão, o IRDR, previsto nos artigos 976 a 987 do CPC/2015, é admissível quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de gerar multiplicação expressiva de demandas e o risco de decisões conflitantes.

Instaurado perante o tribunal local, por iniciativa do juiz, do Ministério Público, da Defensoria Pública ou pelo próprio relator, o IRDR tem preferência de julgamento sobre os demais feitos, salvo os que envolvam réu preso ou pedido de habeas corpus (exposição de motivos do CPC/2015).

O IRDR integra o microssistema dos repetitivos (artigo 928 do CPC/2015). Como lembrou o ministro Og Fernandes, ao relatar o REsp 1.869.867, o acórdão em IRDR (que tem efeito na área de jurisdição do tribunal de segundo grau) pode ser combatido por recurso especial e extraordinário, os quais, quando julgados, pacificam a questão em todo o território nacional – o que confirma a importância desse instrumento para a uniformização da jurisprudência e a garantia da segurança jurídica.

Exatamente por isso, existe a possiblidade de ajuizamento do pedido de suspensão nacional da tramitação de processos que cuidem da mesma questão de direito objeto de um IRDR, a chamada SIRDR (artigo 271-A do RISTJ).

De acordo com Og Fernandes, interposto recurso especial ou extraordinário contra o acórdão que julgou IRDR, “a suspensão dos processos realizada pelo relator ao admitir o incidente só cessará com o julgamento dos referidos recursos, não sendo necessário, entretanto, aguardar o trânsito em julgado”.

No caso de indeferimento do pedido apresentado na SIRDR, essa decisão resultará, em regra, na manutenção da suspensão dos processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no estado ou na região, conforme determinado no IRDR pelo tribunal de origem, se houver. 

Decisões importantes sobre o IRDR

Como um instrumento novo no sistema jurídico brasileiro, ainda restam muitas dúvidas sobre o manejo do IRDR, porém, o STJ tem atuado para dirimir tais questionamentos. No julgamento do REsp 1.798.374, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, a Corte Especial definiu a seguinte tese:

“Não cabe recurso especial contra acórdão proferido pelo tribunal de origem que fixa tese jurídica em abstrato em julgamento do IRDR, por ausência do requisito constitucional de cabimento de ‘causa decidida’, mas apenas naquele que aplique a tese fixada, que resolva a lide, desde que observados os demais requisitos do artigo 105, III, da Constituição Federal e dos dispositivos do Código de Processo Civil que regem o tema.”

A Terceira Turma, no julgamento do REsp 1.631.846, acompanhando o voto da ministra Nancy Andrighi , entendeu que não cabe recurso especial contra acórdão de segundo grau que admite, ou não, o IRDR suscitado por alguns de seus legitimados.

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Em webinário realizado em agosto de 2021, o presidente do STJ comentou que “o IRDR possui relevância ímpar para a uniformização das jurisprudências local, federal e trabalhista, reduzindo a atividade repetitiva e o envio aos tribunais superiores de processos que poderiam ser finalizados na origem”.

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Na mesma ocasião, a ministra Assusete Magalhães destacou que “o IRDR é um relevante instrumento concebido pelo CPC/2015 que visa a atender à racionalização do trabalho e aos princípios da celeridade processual, da isonomia e da segurança jurídica na entrega da prestação jurisdicional”.

O critério da relevância contra o abarrotamento da máquina judiciária

Promulgada no dia 14 de julho deste ano, a Emenda Constitucional 125 constitui um marco na história do STJ. A instituição do filtro de relevância para a admissão de recursos especiais no tribunal é o resultado de uma década de debates.

A nova emenda altera a redação do artigo 105 da Constituição Federal, exigindo do recorrente a demonstração da relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no processo. A admissibilidade do recurso somente poderá ser recusada pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para julgamento.

A intenção é que o STJ se concentre no julgamento das demandas que permitem o cumprimento de seu papel de uniformização da lei federal, com discussões que transcendam a importância do tema exclusivamente para as partes.

“A Emenda Constitucional 125 é uma conquista, sobretudo, para a sociedade, que certamente colherá os frutos dessa importante alteração no sistema de interposição de recursos especiais, em que o STJ reforça sua atuação em questões de grande relevância para o jurisdicionado”, avaliou o presidente da corte.

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